29.3.07

Número 208

O MAIS CARO

 

No final deste verão, um incêndio provocado por um raio destruiu o salão do antigo Hotel Vendaval, localizado na minúscula Praia do Barco, um entre tantos balneários do Litoral Norte do Rio Grande do Sul. Fazia bem mais de vinte anos que nenhum hóspede por lá passava – o prédio, na verdade, apresentava uma lenta e dolorosa decadência. Mesmo assim, foi como se as chamas alcançassem o meu coração, distante mais de uma centena de quilômetros do local. Era uma parte importante da minha infância e adolescência virando cinzas.

 

Atualmente, o salão servia de casa para um dos herdeiros, meu amigo Márcio. Portanto, a parte do meu coração que não estava chamuscada, se manteve apertada no peito até que as notícias viessem mais tranqüilizadoras – ninguém ferido, graças a Deus. Mesmo assim, a fúria e a velocidade das labaredas indicavam para a perda material em grande escala. Ou, em outras palavras, não sobraria nada (como, de fato, quase não sobrou). Perguntei sobre os instrumentos e equipamentos musicais (ele é cantor): o que estava no salão, foi perdido. Perguntei pelas roupas e móveis: queimou tudo. Será que nada havia se salvado? Parecia que sim.

 

Algum tempo depois, me contaram que do tal amigo não restou nem a roupa do corpo, que acabou queimada no entra e sai do prédio em chamas. Logo, ele havia se arriscado para salvar, sim!, os seus pertences. Uma TV, quem sabe. Ou a mesa de som, ou um que outro microfone mais difícil de repor. O faqueiro, o microondas, a geladeira, o fogão... Que nada. De acordo com os relatos, este homem se muniu de coragem para buscar algo muito mais caro, precioso demais: alguns quadros com fotos históricas do hotel, da sua família, da nossa praia.

 

Calejado por uma vida que lhe impôs muitas e dolorosas perdas (até mesmo uma filha), o habitante desta casa em chamas não viu a necessidade de salvar nada que lhe valesse no presente ou no futuro. Onde dormiria, o quê vestiria, como cozinharia dali para adiante eram problemas melhor administráveis, em sua urgente escala de valores, na comparação com a perda de imagens impossíveis de serem recuperadas. Imagens sem preço.

 

Fiquei pensando na quantidade de vezes que tragédias metafóricas com a magnitude deste incêndio arrasam as nossas vidas. E também nas diferentes reações que teríamos diante do incontrolável. Poderíamos, quem sabe, sentar inertes no meio fio e chorar todas as perdas, consolados por estarmos a salvo – quem haveria de nos condenar por agir assim? Ou avançar sobre as chamas para buscar nossos bens materiais, nosso dinheiro, aquilo que nos custou tanto sacrifício para comprar, podendo, com isso, até morrer. Mas, provavelmente, os mais sábios seguiriam o mesmo impulso do Márcio, renunciando à segurança pessoal de modo calculado para resgatar aquilo que nos é mais caro, o que é impossível ser recuperado se virar cinzas: a própria imagem. A ninguém deveria faltar coragem ou ímpeto para salvar sua história.

22.3.07

Número 207

PATERNIDADE INSTANTÂNEA

 

Scoop – O Grande Furo, mais recente filme de Woody Allen, é uma deliciosa mistura de thriller policial e comédia de costumes, com pitadas de ocultismo e tendo Londres como cenário. Contudo, nas entrelinhas do criativo roteiro, o cineasta nos serve uma (não) surpreendente receita de paternidade instantânea – daquelas do tipo "agite e sirva" – conseqüência, quem sabe, dos ingredientes de sua vida fora das telas.

 

A trama começa quando Sondra Pransky (Scarlet Johansson), uma jovem estudante que oscila entre o jornalismo e a tradição familiar da higiene dental, é visitada pelo espírito do recém falecido jornalista Joe Strombel (Ian McShane). O local da aparição é a caixa de desmaterialização do mágico Splendini (Woody Allen), durante o truque. O motivo para tal contato é a transmissão daquele que seria o maior furo da carreira de Joe, obtido na Barca dos Mortos: a identidade do criminoso conhecido como Assassino do Tarô que, de acordo com sua fonte, é um herdeiro da aristocracia britânica.

 

A presença de Splendini na trama cessaria logo em seu início, caso não houvesse um detalhe: Sondra (norte-americana, judia e imatura) se reconhece incapaz de fazer a reportagem investigativa sozinha e, talvez por identificação, retorna ao teatro em busca do auxílio do mágico (também norte-americano, judeu e imaturo) para fazer o trabalho. Este, contrariando uma aparente covardia, adota a menina e seu projeto – a ponto de se transformarem em pai e filha na estratégia de se aproximar do suposto criminoso – passando a viver uma divertida (verossímil e radical) figura paterna.

 

Como uma vida em fastword, o filme desfila as mutações de Sondra: de uma menininha indefesa surge a pré-adolescente que morre de vergonha do pai – muito fácil, pois o mágico é especialista em "micos". A seguir, passa a ser desafiadora quando ele se opõe ao seu romance juvenil com o belo Peter Lyman (Hugh Jackman), o suposto Assassino do Tarô. No fim, se revela uma mulher madura e grata. A personagem de Allen, por sua vez, salta em único movimento da posição de velho solitário para pai adotivo, amoroso e protetor. Isto é, tão protetor quanto um sujeito meio maluco consegue ser.

 

Não contarei o final, mas adianto que deixei a sala de projeção convicto de que a paternidade é como uma qualidade congênita, independente até da fertilidade. Tal qual a mistura de bolo do Dr. Oetker, em que basta adicionar o leite e levar ao forno, um pai potencial precisa apenas que alguém lhe adote (o que Sondra, por carência, fez com Splendini). Mais do que nunca, os homens precisam olhar para dentro de si e encontrar o tal pacote de pai instantâneo em suas despensas. Mas não me iludo: há quem não tenha tais ingredientes. O que é uma pena, pois muito da violência na sociedade é resultado da falta de um velho e bom pai em casa. Ou um substituto digno deste nome, fora dela.

15.3.07

Número 206

MULHER

RESUMO ALFABÉTICO

Amor. Todas têm. Nem sempre nos dão. Mas há quem não mereça.

Bolsa. É quase como uma parte do corpo. Não mexa. Nem tente entender.

Cabelo. Raramente perdem. Cuidam bastante. Às vezes, isso sai caro.

Dias. Naqueles, todo cuidado é pouco. Algo meio Dr. Jeckyll e Mr. Hyde.

Escova. Dois tipos: um, carregam na bolsa. Outro, fazem para a festa.

Falsidade. Confie desconfiando um pouco. Não custa. Vai por mim.

G. Ponto G. Persiga: vale a pena! Encontrando, anote o caminho.

Hoje não. Muito mais freqüente do que gostaríamos. É duro...

Intestino. Não é o ponto forte. Com ingestão de fibras, melhora bastante.

Juras. Costumam fazer à toa, e nós acreditamos. Elas, não.

Kendall. Previne varizes – faz muita diferença mais tarde.

Língua. Nossa! Como usam para tagarelar. Mas existem outras aplicações.

Mãe. Cada um tem a sua. A dela será sua sogra, cuidado.

Nádegas. Nunca chame por este nome. Desmerece forma e conteúdo.

Olhos. Olho neles! Reparam em tudo. Mas também entregam o jogo.

Pedidos. Dependendo do tom, são como uma ordem. Obedeça.

Queixas. Fazem muitas. Independente de quanto tentemos acertar.

Risos. Lute para provocá-los. Será meio caminho andado. Ou mais.

Seios. Olhe sem culpa. É mais forte do que nós. Podendo, avance.

Teimosia. Contorne. Use de diplomacia. Não bata de frente.

Útero. É uma das exclusividades. Comanda um bocado de coisas.

Vestidos. Te peguei! Pensou em outra coisa com V, não é? Eu também.

Watt. Não conhecem. Nem Volt. Nem Ohms. E isso não faz falta.

Xereta. Costumam, em algum momento, vasculhar coisas. Até suas.

Zíper. Um obstáculo a ser superado. Abra, e feche o ciclo com o item A.

9.3.07

205

OLFATO

Listas, sejam quais forem, serão sempre diferentes de pessoa para pessoa. Mesmo assim, me proponho a apresentar uma pequena compilação de aromas que considero especiais. Odores que trazem lembranças, prazer, ou que ligam alguma coisa em mim. Um ou outro pode vir a coincidir com o manancial de recordações de quem lê – principalmente os campeões de audiência nos narizes da humanidade. Senão, vejamos.

CHEIRO DE CAFÉ PASSANDO. Um best seller. O perfume do café quase bate o seu sabor, de tão bom. Duvido até que os não tomadores desta infusão considerem o seu aroma desagradável. O cheiro de café tem o poder de nos fazer sentir em casa.

CHEIRO DE TERRA MOLHADA. Apresenta variações: grama molhada, terra sem vegetação molhada, areia molhada, até mesmo calçamento molhado. A chuva, além do seu perfume particular, tem o poder de alterar a paisagem olfativa do lugar. Uma delícia.

CHEIRO DE BRONZEADOR. Hoje, este produto é mais conhecido como PROTETOR SOLAR. Com um nome ou outro, seu perfume é, para mim, o cheiro do próprio sol. Ou do verão. Ou das férias. Enfim, de um conjunto harmônico formado por férias, verão e sol – ainda com uma pitada de infância. Em um dia frio e chuvoso de inverno, uma idéia é abrir uma embalagem de bronzeador para lembrar que o verão existe e logo virá – um elixir contra a depressão.

CHEIRO DE PIPOCA. Vocês já viram carrocinha de pipoca com um painel escrito "pipoca"? Ou propaganda de pipoca? Ou pipoqueiro gritando o nome do alimento para chamar a clientela? Não: isso é coisa de sorveteiro, que, mesmo com um bom produto, precisa colocar fotos coloridas, ter logotipo e corneta. A pipoca se vende sozinha. E o segredo é o maravilhoso aroma!

CHEIRO DO MAR. Demorou, mas cheguei em um não perfume. Afinal, a beira da praia é um lugar no qual vários corpos estão em decomposição. Logo, fedendo um pouco. Mesmo assim, o cheiro do mar me seduz e me balança. Vai explicar...

CHEIRO DE CARRO ZERO KM. Está aí um cheiro bem simbólico. Quase todo mundo gosta de cheiro de carro novo, ainda mais quando é o seu próprio carro novo. Pena que não dura para sempre... Neste quesito, também vale uma observação: não sei se são os carros que mudaram, ou mudou o meu nariz. Porém, em modelos do passado, o automóvel tinha um odor mais particular. Corcel tinha cheiro de Corcel, que era diferente do Opala, do Passat, do Chevette e assim por diante. Se me vendarem os olhos e me puserem dentro destes carros, saberei qual é qual. Nos modelos fabricados atualmente, não terei certeza. Isso é muito estranho.

CHEIRO DE FRANGO ASSADO (OU DE CHURRASQUINHO DE "GATO"). Que me perdoem os vegetarianos, mas a carne assando é de um perfume totalmente perturbador. Simplesmente fantástico e delicioso. E me abre o apetite na hora!

Para finalizar, vou citar dois cheiros que lembram meu pai, em sua homenagem no dia de hoje, seu primeiro aniversário de falecimento:

CHEIRO DE XAXIM. Muito mais marcante do que os incríveis perfumes de suas orquídeas, o cheiro do xaxim me traz a lembrança do pai. Quem sabe pelo motivo de ele ser um homem de trabalho, fazendo o cultivar se tornar ainda mais precioso do que o resultado final.

CHEIRO DE CACHIMBO. Não fumo, nem pretendo fazê-lo. Sequer aprecio o hábito. Mas se alguém estiver fumando um cachimbo a duas quadras distante, sentirei o perfume da fumaça, me fazendo lembrar do pai. Este vício não fez dele alguém mais saudável. Ao contrário. O problema é que não reconheço minha infância sem este aroma. No céu, com sorte, cachimbo não faz mal.

2.3.07

Número 204

INTELECTOCULTURISMO

O que faz um intelectual narcisista no alto da montanha do seu saber é o mesmo o que um fisiculturista defronte ao espelho: espera o eco para deleitar-se com o seu próprio conhecimento. Uma sutil diferença, talvez, seja o fato de o fisiculturismo ser uma atividade bem mais metódica e assumida.

Conheci o fisiculturismo de perto. Até o final dos anos setenta, quem tivesse vontade de praticar levantamento de pesos para ficar forte mais rapidamente, não encontrava academias como as de agora. Na calistênica época, se alguém dissesse "fitness", diríamos, saúde! As alternativas, então, eram os clubes de fisiculturismo. Entrei no Clube Apolo, de propriedade do Sr. Arnóbio, que só pelo nome se tem idéia da figura.

O lugar era (é?) muito diferente de tudo o que me rodeava. A começar pelos principais "atletas" da casa: todos ganhando a vida em boates de barra pesada (perdão o trocadilho), uns atuando como segurança, outros fazendo performances, e um terceiro grupo nas duas atividades. Os "professores" aplicavam um receituário empírico que, óbvio, funcionava ou não para cada aluno. O fisiculturista dito profissional, por sua vez, passava lá por volta de seis horas diárias, hipertrofiando e aprimorando o corpo. O objetivo era estar schwarzeneggericamente perfeito na época de campeonatos. E dá-lhe espelho!

Travei contato com os intelectoculturistas bem mais tarde – para freqüentar este clube, só estando mais velho um pouco. Até muito recentemente, sequer desconfiava que eles existiam, por mais que aparecessem na minha frente. Precisou a minha esposa, que circula no meio acadêmico o tempo inteiro, apontá-los, esses dissimulados. Por analogia, um intelectoculturista é aquele estudioso que passa horas, dias, existências lendo e se ilustrando para, no final, estar mais preocupado em admirar seus próprios bíceps conceituais, grandes dorsais lingüísticos, deltóides filosóficos. Muito pouco diante de tanto investimento cerebral.

Imagino que, ao apontar nesta crônica a semelhança entre estes dois grupos de narcisistas, estarei desagradando ambos. Não é para menos: aparentemente, nada é mais diferente do que um e outro. Mas, na essência, eles se igualam em quase tudo, até mesmo na suposta utilidade de seus concursos de beleza. Eu? Continuo tão magro quanto no tempo do Clube Apolo e olhando-os com uma certa admiração. Afinal, sei que nunca serei um deles. Aliás, jamais alcancei 20% de suas persistências, para o azar do meu espelho.