29.11.07

Número 243 e convites

DEZEMBRO DE 1987

 

um de nós sangra moinhos

de nós, um não crê em miragens

à paz, ao infinito

em nós nasce a viagem

além

Xavier & Penz

Era uma tarde de sábado. Fazia o tanto de calor que se espera do verão porto-alegrense, amenizado por um ambiente subterrâneo – a garagem da casa dos meus pais, onde eu ainda morava. O carro da família, por força da circunstância, estava na rua, ao sol. A bateria ocupava o lugar de praxe: à esquerda de quem entrava no grande salão para dois automóveis, sobre o seu tapete verde, diante da pia ao lado da churrasqueira. Eu repassava pela terceira ou quarta vez a afinação das peles. Revisava as baquetas. Tirava com uma flanela alguma opacidade nos pratos. No peito, uma contagem acelerada queria chamar, de uma vez, o início da música. A primeira batida, contudo, coube à campainha.

 

Antônio, Marcelo e Felipe chegaram juntos. Sorriam. Fora muito fácil localizar o endereço. Trouxeram consigo, entre os amplificadores e estojos de instrumentos, algo fundamental: muita camaradagem e descontração – os três já eram grandes amigos. Perguntaram se a tomada era com certeza em 110 volts. Pediram um T. O sax tocaria acústico e, por isso, não era bom exagerar no volume. Melhor: eu não queria bronca com a família ou com os vizinhos. Ainda tinha o problema da enorme reverberação do ambiente, amenizada somente pela porta de correr em madeira. Para entrar mais ar e luz, abrimos uma grande fresta para a rua – não tinha perigo. O ideal, segundo o consenso, era ter um tecladista na formação. Enquanto não encontrássemos alguém disponível, atacaríamos de quarteto: sax, guitarra, baixo e bateria.

 

No ano anterior eu havia conhecido o primeiro deles: Felipe. Estávamos na praia, em um aniversário. Ambos um pouco deslocados na festa, sem intimidade com quase ninguém. Quando a música entrou na conversa, salvou a tarde. Num instante comparávamos influências, citando álbuns e avaliando compositores. Na época, ele tocava violão e contrabaixo. Prometeu me apresentar outros músicos que também gostavam de jazz e faziam música instrumental: Marcelo e Antônio. De fato, na volta para Porto Alegre, fui assisti-los em uma festa e, depois, em um show do Quarteto Insólito, formação de muita inventividade e pouco futuro. Após a dissolução do insólito grupo, e com os avanços do Felipe no saxofone, os três resolveram procurar um baterista. Apesar de estar mais afastado, eles tinham o meu telefone e quiseram saber se eu topava um ensaio, mais ou menos sem compromisso. Sim, claro! Marcamos.

 

Todos prontos. Coube a mim abrir a contagem. Naquele primeiro sábado, tocamos standards: Sugar, Stella by Starlight, This Masquarade. Best Wishes também, se não me engano. Alguma bossa nova – Wave com certeza. Logo escureceu e, como manda a educação, tínhamos que parar. Era tarde. Tarde demais: vinte anos se passaram e ainda não paramos. A musicalidade experimentada, resultado do bom casamento dos instrumentistas, pedia um novo encontro a cada sábado. O conjunto se mostrava melhor do que o individual, os caminhos melódicos bastante harmônicos. O Grupo Versão Brasileira, nascido assim, mais ou menos sem compromisso, sobrevive por quase metade de nossas vidas. Em dezembro 1987, eu nem sonhava como onde e estaria ao final de 2007. Hoje, não imagino minha vida sem aquela longínqua tarde de sábado. De cinco em cinco anos, mais ou menos, lembramos de que o ideal seria encontrar um tecladista disponível. Se demorar, vamos acabar desistindo.

 

Convites :

 

1)      Dias 30/11, sexta-feira (19h30min), e 1° de dezembro, sábado (17h), o Grupo Versão Brasileira celebra seus 20 anos de existência. Será no Auditório da Livraria Cultura , no Shopping Bourbon Country, 2° piso. No palco, o jazz que marcou nossa história e a participação especial de José Paulo Pires (guitarra) e Clóvis Pires Jr (percussão). Na platéia, contamos com você.

 

2)      A Casa Verde e os autores (eu sou um) convidam para o lançamento do livro Contos de Algibeira. Será na Alameda dos Escritores – Shopping Total (Cristóvão 545) –, também dia 1° de dezembro, a partir das 18h30min. Bom, dá para ver que eu chegarei mais tarde... Mas estarei lá!

23.11.07

Número 242

Convite do baterista: na sexta-feira dia 30 (19h30min) e sábado dia 1° (17h), celebraremos os 20 anos do Grupo Versão Brasileira. Serão shows no Auditório da Livraria Cultura – Shopping Bourbon Country. Venha curtir um jazz!

 

O REINO DESENCANTADO

 

Alice desobedeceu à mãe, que sonhava em preservar sua inocência mais um pouco, e se debruçou sobre a fonte das notícias. Um vacilo e, oh!, despencou no poço que, diziam, era sem fundo. A menina, já adolescente, caiu, caiu e caiu... Na medida em que rumava para baixo, porém, a gravidade parecia diminuir mais e mais. Bizarro!, pensou.

 

Deste modo, enquanto descia quase a flutuar, olhava para os lados e via coisas estranhas: prédios de apartamentos desabavam sem gravidade; escândalos governamentais se sucediam sem gravidade; centenas de assassinatos eram cometidos todos os anos sem gravidade; o trânsito matava mais do que uma guerra sem gravidade; o tráfico de drogas acontecia a céu aberto sem gravidade; aviões escorregavam nas pistas (ou se chocavam no ar) sem gravidade; vândalos pichavam e depredavam monumentos, praças, paradas de ônibus, prédios públicos e privados. Tudo e muito mais sem a menor gravidade. E assim foi caindo, caindo e caindo em si.

 

Quando a menina chegou ao fundo do poço – sim, era mentira: a fonte sempre tivera um fundo de verdade – pousou suavemente no Reino Desencantado. Embora parecesse ter descido ao inferno, tamanha distância que percorrera do mundo anterior – vamos denominá-lo de primeiro mundo – o Reino Desencantado se igualava ao lugar onde Alice sempre vivera. Erguia os olhos e sentia os efeitos do buraco na camada de ozônio; dos rios vinham os odores da poluição; das matas o zoar das serras; olhava para os valores e os via em franca degradação. Bandidos tratados como heróis e vice-e-versa.

 

Mas, qual a diferença? No tal reino, tudo era o mais perene desencanto. Ele se refletia nos olhos das pessoas que por ela cruzavam. Pairava no ar como um sentimento de impotência, ou uma falsa idéia de que sempre fora assim mesmo, ou uma dúvida sobre quando, como e por que reagir. Em contrapartida, líderes se adiantavam em dar explicações: conversa fiada que não aplacava o desencanto reinante. Logo Alice passou a viver, ela própria, desta forma. Um dia, conheceu um rapaz que lhe sorria tímido, verdadeiro príncipe desencantado, e com ele se casou.

 

Quando Esperança nasceu, Alice viu no primeiro olhar da filha um raro manancial de perspectivas. A criança era, sem dúvida, um encanto só. É sempre assim quando nascem, dizia um. Não, respondia Alice, vejo muitos bebês já desencantados nas ruas... Alice e o príncipe cuidaram de preservar o encanto da Esperança, convidando muitas fadas madrinhas para o batismo. Mas os Correios estavam em greve e não entregaram o convite para a fada Ética, que vivia exilada do Reino Desencantado. Ela ficou ofendida por continuar excluída e reeditou, feito uma Medida Provisória, sua maldição: enquanto não a chamassem de volta, trataria de manter aberta a fonte das notícias. Poço que, no futuro, consumiria a Esperança.

 

Passaram-se os anos. Alice recomendava todos os dias para que a encantadora filha andasse do condomínio para a escola, ficando longe daquele maldito poço aberto. Até que uma vez, mocinha, Esperança desobedeceu à mãe. Curiosa, debruçou-se sobre a fonte e, oh!, um vacilo...

15.11.07

Número 241

HINO AO BANDEIRA *

 

Até onde eu saiba, o Árbitro Auxiliar de Futebol, popular Bandeirinha, raramente ascende ao estrelato. Mesmo a virulência da imprensa tende a recair preferencialmente sobre o portador do apito. Uma recente exceção, a bela Ana Paula, apenas confirma a regra. Mas, convenhamos: ela virou celebridade muito mais em função de atributos não laborais, estampados na Playboy. Com justiça, é certo.

 

Compadecido com a eterna posição coadjuvante destes profissionais destemidos (sim, experimente ficar de costas para milhares de pessoas que podem discordar da sua opinião), me lancei à empreitada de compor-lhes um hino.   E, como já existe o nosso belo Hino à Bandeira, tirei proveito realizando pequenas adaptações. Espero, assim, estar homenageando estes auxiliares para lá de imprescindíveis para o bom espetáculo esportivo. Os árbitros que o digam! Vamos ao hino:

 

Salve lindo pendão na esperança/De que o jogo transcorra em paz

Tua nobre presença à lembrança /A grandeza das regras nos traz

 

Percebe o acerto que se encerra/No erguer firme, viril

Querido é símbolo que flagra/Impedido, quem ninguém mais viu

 

De tua vista do campo demarcas/Se a bola, inteira, cruzou

Outra linha, no centro das metas/Validando ou não mais um gol

 

Percebe o acerto que se encerra... (refrão)

 

Contemplando o trio perfilado/Compreendemos o vosso dever

Auxiliar quem está imbuído/De toda autoridade e poder

 

Percebe o acerto que se encerra... (refrão)

 

Sobre a imensa nação brasileira/Nos momentos de festa ou de dor

Pegas sempre, sagrada bandeira/Na banheira, mais um jogador

 

Percebe o acerto que se encerra... (refrão)

 

Bom, para quem estranhou o tema, explico: a crônica acima foi escrita sob encomenda para veicular no jornal Marca da Cal de agosto de 2007 – publicação do Sindicato dos Árbitros do Estado do Rio Grande do Sul. De parabéns Carlos Eugênio Simon, Presidente, pelo espaço sempre reservado à literatura.

 

Mas, qual a razão de ela estar aqui, agora? É por tê-la apresentado para alguns estudantes em Feiras do Livro escolares como exemplo de crônica que utiliza uma paródia. E, para a minha surpresa, por nenhum aluno ter mostrado o mais remoto conhecimento sobre o Hino à Bandeira (apesar de todos os professores terem ao menos a melodia de cor). Aproveito, então, a passagem do Dia da Bandeira – 19 de novembro – para compartilhar com vocês a minha preocupação: onde andará o civismo?

 

* Paródia do Hino à Bandeira, de Francisco Braga e Olavo Bilac.

 

8.11.07

Número 240

A TEORIA DA MOELA

 

Na família estruturada sob o domínio patriarcal, a moela, iguaria unitária e diminuta de um frango, cabia ao provedor. Também a ele era destinada a primazia na escolha do corte de sua preferência. Aos miúdos, digo, aos filhos, eram franqueados os demais cortes da ave, mais ou menos nobres, dependendo do gosto do pai. Na época, o homem gozava de prestígio, ou de poder, para ditar regras que lhe favorecessem. E ai de quem questionasse tais regras. Eu sei porque fui criança nesse tempo.

 

Duas ou três décadas se passaram e a figura do homem provedor se tornou tão rara quanto galinheiro no pátio de casa. O número de filhos diminuiu radicalmente e as mulheres ganharam o mercado de trabalho. Um cenário tão modificado exigiu novos papéis e, com eles, novas regras. Quando o homem acordou, a moela já estava no prato do filho – ou dividida, em caso de mais de um bacuri. Agora, também, as crianças escolhem os pedaços do frango que mais lhes agradam. E ai de quem as desfavoreça. Eu sei porque sou pai nesse tempo.

 

Você já se deu conta de onde quero chegar: sou de uma geração desmoelada. Não comemos a moela quando éramos filhos e não estamos comendo quando somos pais. Para piorar, nada indica que comeremos quando chegarem os netos – os avós são uns derretidos. Mas não se compadeça, porque isso não é uma queixa. É uma triste constatação, carregada de implicações simbólicas. A novidade é que me tornei um revolucionário.

 

E contra o que luto? Contra leituras mal feitas de manuais pedagógicos e toneladas de culpa por pai e mãe estarem absorvidos pelo frenético mercado de trabalho. Criaram-se alguns monstros. Meninos e meninas de classe média cobertos de mimo e proteção; isentos de limites; imunes à frustração; devoradores de moelas. Hoje, pais são amigos e confidentes. Há liberdade que beira o acobertamento. No melhor dos mundos, os rebentos desaprenderam a questionar – questionar quem, se todos estão a meu favor? Assim, sequer saem de casa.

 

Aos dezessete anos eu já sonhava em morar sozinho. Tudo o que eu queria era um JK mal mobiliado e uma moela no prato. Azar que eu tivesse que prepará-la e lavar a louça depois – os ganhos compensavam o esforço. Tive pais dedicadíssimos e que pagaram aos filhos escola e médico particulares, mas nem em sonho nos deixaram (os filhos) mandar em casa. Mesmo sem uma cobrança explícita, estava claro que não podíamos perder o ano na escola ou sair e chegar em casa quando bem quiséssemos. Para se governar, era preciso, antes, se sustentar.

 

Sim! É isso! Para o azar – sorte? – dos nossos filhos, tomamos uma decisão revolucionária lá em casa: passem a moela para cá! Vamos dividi-la entre o casal provedor e saborear na frente das crianças. Horror, horror! Eles precisam crescer sabendo que há algo para perder e para conquistar. A paternidade já nos faz abrir mão de coisas demais, sem medir sacrifício. Não parece justo perder o controle da situação – sem falar de alguns bons prazeres. Quem quiser nos acompanhar nessa trincheira, não tire o olho da moela!