29.4.09

Número 315

AS QUERELAS DE BRASÍLIA*
Boi Barroso & Brejo

Brasília (1), minha Brasília brasileira
Da mamata inzoneira
Vou cantar-te em tantas verbas

Ó Brasília trampa que dá
Bandoleiro que faz lucrar
Ó Brasília do meu pavor
Terra do nosso penhor
Brasília! Brasília!
Pra mim... Pior pra mim...

Ô, abre a caixinha do plenário
Tira à mancheia do erário
Bota o imposto no otário
Brasília! Brasília

Deixa ganhar o especulador
Misericórdia é toda tua
Se é banqueiro o devedor
Quero ver essa grana caminhando
Pelos milhões se afastando
Do bolso do assalariado
Brasília! Brasília!
Pra mim... Pior pra mim...

Brasília, terra tão onerosa
Da emenda sestrosa
De pilhar indiscreto

Ó Brasília vende que dá
Outra lei complementar
Ó Brasília do meu pavor
Terra do nosso penhor
Brasília! Brasília!
Pra mim... Pior pra mim...

Ô esse empreiteiro que não pouco (2)
Fez aumentar a sua renda
Nas obras que soube ganhar
Brasília! Brasília!

Ô, oi essas fontes governantes
Onde mamatam-se com sede
E onde a viúva vai dançar
Ó essa Brasília linda intrigueira
É minha Brasília brasileira
Terra toda eleitoreira
Brasília! Brasília!
Pra mim... Pior pra mim...

* Paródia de Aquarela do Brasil, do mestre Ary Barroso.

Nota-se (1): esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com as teimosas notícias de política e economia das sucursais jornalísticas de nossa Capital Federal terá sido mera coincidência.

Nota-se (2): no original, este verso cita o “coqueiro que dá coco”. E o que mais poderia nos dar um coqueiro? – cabe a pergunta. Bom, em Brasília, dependendo da mão que aduba, coqueiros podem dar até cerejas nas noites claras de luar. Há quem duvide?

22.4.09

Número 314

SÃO TANTAS EMOÇÕES...

Agora é oficial: Roberto Carlos – o cantor e compositor da Jovem Guarda – dá início às festividades de seu cinquentenário musical, a completar-se em 2009. Serão diversos espetáculos e tributos, muita tietagem e mesuras dignas de um rei. Reconhecendo plenamente os méritos da prolongada e vencedora carreira, almejo para outros dedicados profissionais com este tempo de trabalho uma comemoração de semelhante vulto. E, inspirados na majestade dos palcos, poderiam agradecer assim:

Farmacêuticos, olhando a chegada de mais uma receita em suas mãos, diriam: são tantas emulsões...

Os agiotas e demais profissionais que labutam na generosa tarefa de cobrar juros escorchantes, em lágrimas, agradeceriam: são tantas extorções...

Cirurgiões gerais: são tantas incisões... Cirurgiões plásticos: são tantos esticões... Cirurgiões dentistas: são tantas restaurações...

Agentes e guias turísticos, ao completarem cinco décadas à frente de crianças e idosos, diriam: são tantas excursões...

O paramédico, percorrendo a cidade nas ambulâncias, comemoraria seu cinquentenário dizendo: são tantas remoções...

Políticos no palanque: são tantas eleições... E, depois, com seus cupinchas: tantas locupletações...

Os publicitários, gerentes e diretores de marketing anunciariam assim: são tantas ilusões...

Padres, pastores, rabinos e toda sorte de pregadores da palavra de cada um de seus deuses, diriam em ladainhas: são tantas orações...

Jornalistas e escritores, no ano em que completarem seus cinquentenários, autografariam: são tantas edições...

Em cinco décadas, caso tenha conseguido ludibriar as autoridades mundiais, o terrorista mandaria uma carta bomba: são tantas explosões...

Feirante: são tantos agriões... Churrasqueiros: são tantos salsichões... Cozinheiros e garçons: são tantas refeições...

Geneticistas, obstetras e demais pesquisadores da área da fertilidade poderiam agradecer às homenagens dizendo: são tantos embriões...

Motoristas, cobradores e maquinistas, chegando neste ponto, diriam: são tantas estações...

Matemáticos: são tantas adições... Físicos: são tantas equações... Astrofísicos: são tantas dimensões...

Professores de português diriam: são tantas redações... E os de educação física contariam: são tantas flexões...

Atores pornôs: são tantas ereções... Atrizes pornôs: são tantas felações... Censores: e tantas proibições...

Advogados e juízes de direito, afogados em nosso interminável oceano de processos e recursos, julgariam prudente dizer: são tantas petições...

Neurologistas: são tantas convulsões... Cardiologistas: são tantas pulsações... Traumatologistas: são tantas contusões...

Por fim, o cronista amigo, depois de cinco décadas em laudas semanais, agradeceria a sorte de poder escrever sobre qualquer tema, puxando o microfone de lado e atirando uma rosa para a platéia: são tantas opções...

15.4.09

Número 313

CRACK: QUEBRAR, PARTIR

O crack, uma das mais devastadoras drogas desenvolvidas pelo homem, pode ser escutado como uma palavra onomatopéica que significa quebra. E parece ser consensual a ideia de que, depois do crack (após o rompimento), são poucas as chances de as estruturas partidas voltarem à integridade como se nada tivesse acontecido. Cabe, então, pensarmos nas forças que atuaram antes do fato, criando as condições para tal quebra, ou, no mínimo, abstendo-se de cautela. Nossa chance está na antecipação.

Comecemos procurando as frestas, pois, diz a lógica, o rompimento tende a acontecer nas estruturas comprometidas. Quando olhamos para a família, outrora o elo mais forte da corrente social, percebemos que ela nunca esteve tão fragilizada. Sob o manto tecido com mil justificativas, algumas até certo ponto plausíveis como a falta de tempo (causada pelo excesso de trabalho), pais delegam para terceiros a educação integral de seus filhos. Neste cenário, deixam de passar valores básicos para uma boa composição emocional das crianças, tais como limites de conduta, ética, perseverança. Ou, pior, cultivam uma rotina distante, ou até violenta, eco de um ambiente sem fraternidade.

Digamos, porém, que a família esteja bem preservada, com o amor em dia e valores consolidados. A próxima rachadura que facilitaria o crack está no primeiro degrau fora de casa ‒ o espaço gerido pelo poder público. Nele, a impunidade e a permissividade nunca estiveram tão presentes. A falência da ordem institucional fez crescer poderes paralelos, financiados pelo dinheiro das drogas, instaurando um ambiente de terror e subserviência. Além do mais, o trabalho honesto, o estudo dedicado, em última instância a virtude, tudo passa a ser visto como uma fraqueza. Esperto, inteligente e próspero é quem está no lado marginal. Mané é o sujeito que trabalha o mês inteiro para comprar um par de calçado, pronto para ficar sem ele no primeiro arrastão.

Mas não basta atirar nas costas largas do Estado toda a responsabilidade sobre o bem comum. Se existem falhas na fiscalização e punição de agentes ligados ao narcotráfico, a incompetência estatal seria minimizada caso não houvesse consumo. E como há! Além disso, todos os crimes cometidos por usuários desesperados por dinheiro encontram na própria sociedade os receptadores, os comerciantes e os novos compradores do roubo. Cada pedra de crack acendida na esquina já movimentou uma cadeia econômica gigantesca. E isso não é uma rachadura fácil de ser mensurada, interrompida e novamente consolidada.

Por fim, a última falha que causa o crack está dentro do nosso próprio cérebro. Ironicamente, atende pelo nome de fissura. Em nome dela, tudo o que aprendemos com os pais é esquecido; o tanto quanto a escola nos fez crescer cai por terra; as recompensas do trabalho serão menores; nenhum esforço institucional parecerá suficiente. A fissura é a deusa do imediato, não mede consequências, desconhece limites, devora o homem. Antecipar-se à fissura, explicar seu preço e falar de seus riscos é evitar o triste rompimento, a quebra, o crack. Isso, ou ver nossos filhos, tão cedo, partindo.

9.4.09

Número 312

RESSURREIÇÃO

O orador prepara-se para fazer seu pronunciamento. Traz consigo um ar grave, solene. Apóia um pequeno volume de papéis no púlpito. Pousa suas mãos sobre as folhas e mira a plateia por alguns segundos. Nisso, um bêbado, ruidoso, entra e senta-se lá no fundo. O homem espera até que ele esteja acomodado. Limpa a garganta. Toma ar. Começa:
– Nosso tempo se mostra menos esperançoso do que outras épocas. Mas, creiam, houve alguns momentos em que a humanidade pareceu correr mais e maiores riscos ‒ pausa dramática. ‒ Mesmo assim, apesar dos sacrifícios, fomos salvos. E hoje, como ao contrair uma dívida, precisamos renovar nossa crença no amanhã. Nenhuma outra época é mais apropriada.
Neste momento, o orador tira do bolso do paletó um ovo. Olha para ele, gira, examina. Mostra-o a todos como quem exibe um trunfo. O bêbado, lá do fundo, diz:
‒ Já sei! É um ovo! – esperando ser ovacionado.
A assistência olha para trás e murmura em desaprovação. O bêbado desdenha com as mãos. O orador retoma sua linha de raciocínio.
– O ovo – ensina ele – está aqui para nos servir de metáfora. Ele representa a vitória da vida sobre a morte. A célula a partir da qual tudo se cria. Não importa o quanto tenhamos sofrido, o quanto estejamos abalados, diminuídos, carentes: a partir de um simples ovo, tudo o que é capital pode ressurgir. Uma vida nova, em outras condições, em outro cenário. Mais favorável, é claro!, por mais sombrio que sejam os escombros.
O bêbado ergue o braço pedindo um à parte. O orador atende com educação.
‒ Já sei! – fala, enrolando a língua. – O senhor quer nos chocar!
A plateia volta a protestar com mais veemência. O bêbado ri de sua esperteza. O orador agradece com meio sorriso, devolve o ovo para dentro do bolso, junta um cesto que estava no chão, atrás de si, e segue:
– Quando compartilhamos esse sentimento de renovação, é como experimentar a própria ressurreição. Isso, mais do que nunca, é uma garantia a ser repartida. Porém, é apenas o primeiro passo...
– Já sei! – levanta-se o bêbado. – Nunca devemos pôr todos os ovos no mesmo cesto!
Agora, já se escuta mais do que um burburinho na assistência. Não fosse um local civilizado, alguém teria partido para cima do inconveniente alcoolista. Mas o orador, demonstrando uma paciência monástica, pede silêncio e serenidade a todos. E aproveita o gancho:
– Vejam bem: crises como esta que experimentamos, meus caros, é tudo o que desejam os que não professam de nossas crenças.
Os ânimos, enfim, acalmam-se. É quando o orador retira do cesto um coelhinho branco. O bêbado levanta a mão novamente, mas não é atendido. Com o coelho no colo, e o cesto devolvido ao chão, o orador pergunta:
– E o coelho, qual a metáfora que nos apresenta o coelho?
O bêbado acena com insistência, querendo responder. O orador não lhe dá oportunidade, seguindo:
– Eu lhes digo: a fertilidade. A criatividade. A novidade. Crescer para multiplicar!
– Já sei! – salta o bêbado, sem se conter. – Já que é sacanagem, vamos nos f...
– Basta! – altera-se o orador. – O senhor passou de todos os limites. O tema de que estamos tratando é muito sério. É muito caro para a sociedade. Posso dizer... sagrado, até!
– Eu já sei! – comemora o bêbado, ainda de pé e abrindo os braços. – É a Páscoa!
– Óbvio que não! – responde o orador. – Estamos em um Seminário de Economia. Discutimos aqui as alternativas para a grave crise financeira internacional.
– Ih, então já sei... – lamenta o bêbado, mantendo os braços erguidos. – Vocês salvam a própria pele, e cruz vai sobrar para mim.

1.4.09

Número 311

1964

O ano de 1964 é, para mim, impossível de ser esquecido. Mesmo que eu quisesse, lá está ele na certidão de nascimento, na carteira de identidade, de motorista e em todo e qualquer cadastro que venha a preencher. Sim, foi quando eu nasci. Por outros motivos, os meados da década de sessenta estarão para sempre na lembrança do povo brasileiro. Brotaram ali os denominados anos de chumbo, a ditadura militar, nosso mais recente período de rompimento democrático. E, entre a alegria de comemorar o aniversário e a tristeza ao lamentar os fatos históricos, o sentimento que me surge com mais força quando este ano é citado é outro: o medo.

Em 31 de março de 64, data convencionada para marcar o início do levante que tirou Jango da presidência, eu ainda estava na barriga da minha mãe. Teoricamente, nada poderia temer. Mas a vida me deu mostras de que fetos e recém nascidos são criaturas reféns dos sentimentos da genitora. E, na época, minha mãe tinha muito, muito medo. A empresa onde meu pai era diretor estava na lista de estabelecimentos a serem incendiados por militantes de organizações inspiradas em ideologias totalitárias de orientação esquerdista. O patrimônio obtido a partir do trabalho do meu avô, que chegara do interior à cidade de Porto Alegre aos quatorze anos de idade com uma única muda de roupa na mala, corria o risco de virar cinzas. Daí o justificável medo.

Dito isso, não deixo a menor sombra de dúvidas de que fui criado em um lar apoiador das ações militares. Ou, simplificando, de direita. Meu pai viveu defendendo a tese pela qual os quartéis, aqui e em outros países da América Latina, livraram suas nações de grupos financiados, treinados e submissos à Cortina de Ferro, e que pretendiam transformar nossa ordem política e social em uma enorme Cuba. E, isso ocorrendo, ele estaria condenado à prisão ou morte. É impossível adivinhar como seria o Brasil neste caso, pois hipóteses não passam de exercícios de ficção e, assim, não se sustentam. O único parâmetro confiável é o da realidade: meu pai faleceu sem ver a ilha de Fidel abandonar um severo regime ditatorial, bastante impermeável às idéias opostas.

Na medida em que eu e minhas irmãs mais velhas fomos crescendo, todos os nossos heróis surgiam, que ironia, como homens de esquerda. Músicos, escritores, jornalistas, atores, mestres e amigos sofriam com o cerceamento de suas palavras e ações. As idéias que não habitavam no exílio se escondiam em metáforas, resistindo na medida do possível à censura. Multiplicavam-se os relatos de perseguição, morte e tortura. O livre pensar, por si, já era um libelo subversivo. E o medo de que uma palavra mal interpretada levasse a nós, ainda meninos, para os porões da ditadura, voltou para a minha casa. Afinal, claro, engrossávamos as fileiras que pediam o final da ditadura. Tudo o que condenava o Brasil a uma vida miserável de Terceiro Mundo era culpa da falta de democracia. Acreditávamos que o voto viria a nos redimir.

Por fim, a liberdade saiu vencedora. A redemocratização lenta e gradual, muito comemorada na conquista do primeiro governo civil, tanto mais quando pelo voto direto, sepultou o silêncio. Raiou a esperança já desejada e prometida em verso e prosa. Os militares voltaram para a caserna e o medo de emitir opiniões esmoreceu. O cálice de vinho tinto de sangue foi afastado; a noite terminou; o sol nasceu; as flores venceram os canhões. O Parlamento redigiu a Constituição Cidadã. O voto colocou, então, um a um, os principais nomes e partidos de esquerda nas diversas esferas do poder.

Hoje, trinta e um de março de dois mil e nove, no momento em que escrevo esse texto, a ditadura militar volta a ser pauta. Na mesma edição de jornal, pipocam notícias nada abonadoras sobre os poderes Executivo e Legislativo. A violência e a roubalheira crescentes denunciam a falência do Judiciário. Como em um círculo vicioso, o medo renasce em meu coração: o calote vexatório apresentado pela democracia brasileira redime, justifica ou permite cogitar governos de exceção? Temo, profundamente, que alguém responda que sim. Quero morrer acreditando que o voto continuará a ser a melhor maneira de impedir que a liberdade, cujas asas estão abertas sobre nós, defeque em nossas cabeças.