2.7.09

Número 324

MEMÓRIAS DO FUNDO DO BOLSO

Nasci muitas moedas atrás, lá nos idos dos anos sessenta. Meu pai tinha pouco menos de trinta anos de idade à época. Ele, quando infante, viu morrer o Mil-réis – a moeda que antecedeu nosso primeiro Cruzeiro (Cr$). E foi com as novas cédulas que ele pagou sua grapete, as entradas de cinema, as passagens de bonde. Pagou a faculdade, as alianças que ofereceu à noiva e a maternidade de seus três primeiros bebês. Depois, na curta vida do Cruzeiro novo (NCr$), pagou o hospital que recebeu o filho caçula e, no mesmo ano, as entradas para ir comigo na inauguração do estádio Gigante da Beira-Rio. Com NCR$ comprou a pipoca daquela noite mágica em que o Colorado enfrentou o Benfica de Portugal, time do lendário Euzébio (Inter 2 X 1 Benfica). Para ficar no futebol, os Cruzeiros novos deram lugar outra vez ao Cruzeiro em 1970, um pouco antes de nos tornarmos Tricampeões Mundiais com Pelé, Zagallo, Jairzinho e companhia.

Mesmo reconhecendo que o primeiro Cruzeiro e seu novo (NCr$) saldaram despesas representativas na minha existência, a primeira moeda com que lidei de verdade foi o renascido Cr$. Era com Cruzeiros no bolso que eu pagava o sanduíche prensado durante o recreio no colégio, comprava gibis do Mickey e da Mônica, e picolés Chicabom nos verões intermináveis das férias na Praia do Barco. Com essa moeda levei para casa, orgulhoso, um LP da Clara Nunes. E os Cr$ foram acompanhando meu caminho musical até eu bater nas portas do jazz, no impecável álbum Zabumbê-bum-á de Hermeto Pascoal (1979). Temas como Suíte Norte Sul Leste Oeste abririam meus sentidos para, literalmente, todas as direções. Ainda com o mesmo padrão monetário, desgastado pela persistente inflação, entrei e saí da universidade, caindo no mercado de trabalho em um período de economia muito, muito desafinada. E de desvalorização monetária ensurdecedora.

Em 28 de fevereiro de 1986, no instante em que, entre amigos, cruzávamos o Rio Mampituba (a divisa entre os estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina) nasceu o Cruzado (Cz$). Voltávamos de férias em Florianópolis. Dílson Funaro era o pai da nova moeda, vinda para tempos de Nova República. O mais proeminente ministro do primeiro governo civil de nossas vidas, presidido por José Sarney, cortou, junto com o cordão umbilical, três zeros da antiga cédula. Naquele dia, com tantas incertezas quanto esperanças, eu mudava de categoria: deixava de ser um pé-rapado milionário para me tornar um pé-rapado na casa das dezenas. Foi, também, o momento em que minha vida coincidiu com a vida das moedas nacionais: várias mudanças em pouco tempo. Pulando de plano em plano econômico, troquei de profissão, noivei, casei e descasei. Tudo isso entre Cruzados, Cruzados Novos (NCz$) e os Cruzeiros outra vez – a nova/velha moeda. Perdi as ilusões, muitos zeros no caminho e, tristemente, boa parte dos cabelos. Conheci uma nova companheira: a enxaqueca.

O Cruzeiro Real (CR$), sétima moeda que caía no meu bolso, foi criado por Itamar Franco em 1° de agosto de 1993. Isto é, nas portas dos meus 29 anos, coincidindo com a idade do meu pai à época em que nasci. No mês seguinte encontrei minha amada e, antes da chegada da URV (um fator de conversão com cara de dinheiro) e do Real (R$), já estávamos casados. Assim, para nós será sempre muito fácil saber a idade do atual padrão monetário, cujo aniversário de quinze anos aconteceu dia 1º pp. Na vigência do Real construímos a família. Tediosamente, nossos filhos não conhecem outra moeda. Nem os constantes cortes de zeros arremessados nos dragões da inflação. Nem sabem o que é a inflação. Eles acham isso tudo muito maluco!

A solidez da economia brasileira talvez seja o principal benefício resultante de nossa jovem democracia, senão o único. Meu desejo, agora, é que em um futuro próximo meus filhos escrevam um texto sobre os escândalos políticos, a anarquia administrativa e as fraudes generalizadas estampadas em nossas manchetes de jornais. E leiam para os meus netos, explicando o inexplicável: como conseguíamos viver daquela (dessa!) maneira. E anões do orçamento, mensalões e atos secretos soem tão distantes quanto Mil-réis, Cruzeiros e Cruzados. Enfim, que o nepotismo, a corrupção e o clientelismo sejam, de uma vez por todas, moedas fora de circulação.

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