25.9.09

Número 336

ORGULHO DE TER VERGONHA

Não sei quantas vezes durante a infância, pouco importando o tamanho da arte cometida, escutei essa frase vinda dos meus pais: menino, tu não tens vergonha? Fosse fazer xixi no pátio do vizinho, quebrar ‒ de propósito ‒ o brinquedo da irmã, responder de modo desrespeitoso a um adulto, toda e qualquer malcriação, na visão de quem me educava, deveria ser motivo suficiente para que eu me envergonhasse. Além do mais, quando eu não me comportava direito na casa dos outros, na escola ou em uma loja, quem morria de vergonha eram os meus pais. Então, depois de se desculparem por mim, me repreendiam severamente, deixando claro que eu, agindo assim, os envergonhara.

O resultado dessa educação de rédeas curtas e limites claros, muito comum em outros tempos, foi a consciência de que, não gostando de passar vergonha, eu deveria tratar de ser bem educado e andar na linha. Em outras palavras, a capacidade de eu sentir vergonha dos meus desvios de conduta passou a ser motivo de orgulho para quem me educou. Assim, depois de crescido, não precisei mais do pai ou da mãe me dizendo o que é certo ou errado, nem como fazer para ser considerado alguém digno de respeito. Sou muito grato a eles por isso, na mesma medida em que espero a gratidão dos filhos, no futuro.

Essa introdução faz algum sentido quando analisamos um fato recém acontecido em Viamão, cidade da Grande Porto Alegre onde moro, mais especificamente na Escola Estadual Barão de Lucena. Logo depois de arrecadar dinheiro na comunidade e pintar o prédio em forma de mutirão (ele estava coberto de pichações), a professora (e vice-diretora) obrigou um aluno de 14 anos a, diante dos colegas, cobrir com tinta os escritos que ele próprio havia feito, entre outros, nas paredes recém pintadas. Mais: teria dito que o menino seria um bobo da corte, fato evidente por ter sido filmado em um celular. Ao filme, obtido por um estudante sem o aval da professora, foi dada publicidade. O resultado é que os pais se insurgiram contra a educadora, alegando humilhação. Exigem sua punição, enquanto o menino não quer mais voltar para a sala de aula.

Antes de defender ou condenar a professora, ou mensurar seu eventual excesso, fui acometido de um sentimento exultante: até que enfim as pessoas estão retomando a capacidade de sentir vergonha! O pichador foi revelado corrigindo seu delito e ficou com vergonha? Viva! Os pais estão morrendo de vergonha por ter um filho malcriado e reagem de modo passional e desesperado em sua defesa? Aleluia! Porque quando alguém vem me visitar em Viamão, e transita diante dos prédios completamente pichados da principal avenida da cidade, quem morre de vergonha somos nós: eu e todos mais que respeitam o espaço público e privado.

Precisamos abandonar a ideia de que quem comete delitos é esperto e quem é cumpridor de suas obrigações é trouxa. Aparecer na TV algemado depois de cometer um delito é vergonhoso? Sim, é: todos tentam esconder o rosto. Para evitar isso, que tal não cometer crimes? Ver exposta sua identidade sofrendo uma censura depois de fazer algo errado é vergonhoso? Claro que é, tornando legítima a reclamação dos pais do aluno pichador. Vergonha maior, no entanto, deveria ser o fato de ele ter cometido, acintosa e deliberadamente, o ato! Isso foi o que eu aprendi em casa.

Dou a cara a tapa diante dos estudiosos da área da Educação quando me posiciono mais a favor da professora do que dos pais e do aluno. Considero como atenuante o fato de que ela ainda estava com os braços doendo depois de repintar o prédio quando foi incisiva na punição ao pichador. Também desculpo a população que vibrou tanto quanto eu ao ver alguém ser punido de modo exemplar: faz tempo que a vergonha está pendendo apenas para o lado de quem não deveria senti-la. A inversão anda tanta que um corretivo merecido, ao invés de ser trivial, virou notícia de TV! Ou a população revisa seus valores, voltando a ter orgulho da virtude e vergonha da delinquência, ou tudo estará perdido. Estranhamente, uma das minhas virtudes é saber, desde pequeno, como é ruim sentir vergonha.

17.9.09

Número 335

AMANTE DE BOLSO

A tese é de uma amiga, e me pareceu bastante curiosa: o homem ideal para se ter como amante é aquele de porte pequeno – baixo e, necessariamente, magro. A maior estranheza nasce da inversão plena do senso comum, no qual o Ricardão dos sonhos é grande (e aí está o superlativo para nos auxiliar), musculoso e bem dotado. Isso tudo passaria a ser uma polêmica vazia caso ela não fosse capaz de sustentar a sua teoria. O problema é que ela trouxe para a conversa uma série de argumentos, e eles foram por demais eloquentes.

Primeiro, minha amiga se deteve em aspectos logísticos: nos apartamentos de hoje, como esconder um amante de tamanho GG para escapar de um flagra? Segundo ela, é muito difícil. Só um magrinho é capaz de enfiar-se debaixo de uma cama Box ou encontrar um canto em armários cada vez mais lotados. Em outras épocas, as camas eram altas e os amantes do tipo armário cabiam com folga dentro dos robustos guarda-roupas. Isso sem falar nas manobras de desespero: quem aguenta mais tempo pendurado do lado de fora de uma janela, o levezinho ou o pesadão? Acima do segundo andar isso faz muito sentido.

Porém, prosseguiu ela, partindo do pressuposto de que o amante, de qualquer porte, conseguisse esconder-se ainda nu para escapar do flagrante: como explicar as roupas? Para minha amiga, o vestuário está cada vez mais assexuado. Logo, um par de tênis assim pequenos, um jeans de corte clássico ou uma básica Hering não denunciaria, necessariamente, homem algum. Lamento confessar que ela me descrevia... Então, lógico, única preocupação passaria a ser a cueca – que poderia voar pela janela ou ser colocada no lixo do banheiro. A danada parecia ter pensado em tudo!

A seguir foi categórica: amante gordo, jamais. De pesados, bastam os maridos! Os homens miúdos, opinião dela, tendiam a ser mais criativos, ágeis e dotados de bom fôlego. Também mais dóceis para o caso das propostas eróticas que incluem dominação, pois jamais seduziram mulheres na base da imposição física. Outra vantagem dos amantes pequenos seria a necessidade de eles, desde jovens, serem atenciosos e bons de papo. Enquanto os sarados eram assediados por todas as meninas, os miudinhos aprendiam a compreendê-las, valorizá-las, encantá-las, tornando-se uma melhor companhia. E eu nunca havia pensado nisso...

Foi quando eu tentei derrubar sua tese: e aquela específica questão anatômica, como ficaria? Afinal, na média, o corpo humano segue uma certa dose de proporcionalidade. Péssima idéia, pois escutei o que nenhum homem gosta de ouvir: se as mulheres levassem em conta o tamanho daquilo tanto quanto nós pensamos que elas levam, poucos maridos passariam no controle de qualidade. Casado que sou, me senti parte do grupo dos iludidos. Pior, sem saber se deveria me ofender ou me consolar.

Espera um minuto: pensando bem, qual teria sido a razão de ela entrar nesse tema, e com tal riqueza de detalhes, justamente comigo? Será que é por causa do meu manequim 38 e meu pé 37? Ou mesmo por causa do trabalhão que tive na adolescência para arrumar namoradas, enquanto os fortões tinham até duas por vez? Estaria ela tentando me dar algum recado indireto? Não, não, não pode ser. Prefiro acreditar na mera coincidência e ficar imaginando que tem outro magricela por aí, este sim, pegando todas!

11.9.09

Número 334

ANIVERSÁRIO

Aniversário é o dia em que nascemos visto ao longe, nós na janela de trás do ônibus, ele abanando na plataforma de partida. Todo ano nos viramos para conferir se ele ainda acena feliz e, depois de vermos seu sorriso – cada vez mais incrédulo, mas ainda firme –, fica mais fácil seguirmos a viagem.

No aniversário de casamento, por sua vez, somos nós solteiros quem ficamos na rodoviária, abanando para nós casados olhando da janela do assento compartilhado do ônibus. A diferença é que a esposa não gosta muito que olhemos constantemente para trás, nostálgicos, para vermos se aquela vida que deixamos ainda nos sorri. Mas, mesmo ralhando conosco, ela também aproveita para dar uma espiadinha para si, eufórica e saltitante, mandando beijos à distância.

Aniversário de morte são os afetos desembarcados do ônibus por terem chegado aos seus respectivos pontos, nós seguindo adiante. Tanto será mais belo, conquanto beleza e saudade possam conviver em harmonia, tanto mais estivermos sorrindo para quem amamos. Daí a importância de sinalizarem com sabedoria o ponto certo para a despedida. Ou, no mínimo, termos a certeza de que o trajeto percorrido levou todos a uma medida satisfatória de vida.

Meus primeiros aniversários, ainda nos anos sessenta do século passado, tinham sabor de pudim de leite. Um inteiro só para mim, pedia à mãe. Ela, sem falta ou espera, me dava o presente com amor e carinho. Era quando, ano após ano, eu compartilhava a sobremesa com a família. Um doce que excede o apetite, por mais desejado que seja, acaba sendo uma lição para a vida.

O décimo oitavo foi o mais aguardado, torcido, comemorado aniversário da minha vida. Com ele viria a sonhada habilitação de motorista, mil vezes mais importante do que o título eleitoral, outro documento bastante almejado. Também o passaporte para os filmes impróprios para menores – quase todos em tempos de censura. De lá para cá, a censura deu lugar aos dóceis critérios de classificação etária e jamais me envolvi em um acidente de trânsito que me causasse ferimentos, tristeza ou culpa. Porém, quisera ter sido tão bem sucedido com as eleições...

O aniversário repete algumas condições que existiam no momento do nascimento (ou morte). Por exemplo, o sol ilumina a terra de modo semelhante. Em algumas oportunidades, porém, nuvens escuras podem impedir que vejamos esse detalhe. E, mesmo na cálida presença solar, o tempo fará modificar todas as sombras projetadas – as árvores crescerão, a cidade será outra, nós mudaremos também.

Uma vez por ano, somos instigados a olhar para trás, para nossa plataforma de partida. É também quando a vida, a História e a morte sentam-se à mesma mesa em celebração de aniversário, seja ela de uma pessoa, de uma cidade, empresa, conquista ou tragédia. Ali estarão servidas lembranças frescas ou bem conservadas, surpreendendo nossa memória com muita clareza. E, entre comemorações e lamentos, ressentimentos e abraços, o que terá maior valor será a oportunidade de congraçamento, de partilha, de íntima comunhão – por mais legítimo que possa parecer o desejo de um exclusivo pudim de leite condensado.


4.9.09

Número 333

MÃOS ATADAS, SORRISO SOLTO

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Carlos Drummond de Andrade


Aconteceu algo estranho comigo durante a semana, uma situação que julgava difícil de ocorrer. Quando encontrei um bom amigo lá dos tempos de Universidade, e enquanto conversávamos, chegou até nós o seu filho. Depois das apresentações, estendi a mão ao graúdo rapazinho de onze anos. Ele, que estava de braços cruzados, assim permaneceu, deixando minha mão dependurada no vazio. O pai, atônito, alertou: Vem cá, não vai cumprimentá-lo, meu filho? Ele respondeu apenas com um olhar de surpresa, como quem diz: Está louco? Depois de poucos segundos de perplexidade geral, como quem decodificasse a mensagem não dita, meu amigo explicou: Ah, isso é por causa da Gripe AH1N1...

Ato contínuo, falou-me que o menino estava tão imbuído do espírito de prudência que não permitia que ele chamasse o elevador apertando o botão com o dedo (indicava o cotovelo como alternativa), entre outras atitudes de cautela. Mesmo assim, ainda incrédulo, o pai voltou a pedir que a criança apertasse a minha mão, pois isso seria a atitude mais educada. Neste momento, fui eu a declinar, antes mesmo de ele esboçar alguma intenção: nosso aperto de mãos bem poderia ficar para outra hora, em condições menos adversas. E, convenhamos, todos nós já estávamos com uma boa dose de constrangimento para administrar.

Depois de nos despedirmos, imediatamente me coloquei no lugar do pai (pois também o sou). Fiquei pensando se eu, na mesma situação, poderia fazer algo além do que ele fez. Acho que não... Isto é, partindo do pressuposto de que aconteceu uma conversa entre pai e filho logo adiante – e eu acredito nisso. Como se trata de pessoas educadíssimas, ficara evidente que o menino não estava sendo malcriado, muito menos assim considerava-se. Reagia, isto sim, mecânica e incondicionalmente ao treinamento de prevenção recebido. Para a criança, errado (imprudente, deslocado) fui eu quando lhe ameacei com um temerário aperto de mãos.

Aí está o problema da informação, do treinamento, da orientação em massa. Cada um de nós absorve as indicações para prevenir-se do contágio da Gripe AH1N1 em uma medida extremamente variável. Uns, mais paranóicos, deixam de sair de casa sob qualquer hipótese. Os indolentes passam, no máximo, a lavar as mãos com uma frequência um pouco maior. E, entre o preto e o branco, passa a existir uma enorme faixa gris, clareada ou escurecida conforme julgamentos pessoais. Neste sentido, as autoridades sanitárias fazem o que podem, comunicando atitudes que, a princípio, parecem padronizadas. Mas acabam de mãos atadas diante das tantas interpretações diferentes.

Fiquei um tantinho sem jeito com a situação em que acabei envolvido, a ponto de compartilhar o sentimento com os leitores. De um lado, um menino com medo, ou cuja natureza é a de levar tudo ao pé da letra. Do outro, um adulto (eu) até certo ponto descuidado, confiante ao extremo no organismo e suas defesas. Entre nós, um pai colocado em indefectível saia justa. Depois, refletindo, cheguei à conclusão de que só há uma vacina capaz de prevenir essas circunstâncias: o bom humor. Substituíssemos o aperto de mãos por um largo sorriso e um Olha a gripe!, nenhum desconforto teria nos inoculado.