29.10.09

Número 341

O JOGO


Rapaz, peça azul, recebe suas cartas do destino. Moça, cor-de-rosa, idem. Em jogo, o cotidiano do matrimônio. Os dados ditam os possíveis avanços. Começa outra emocionante partida de devagar se vai (ou não) ao longe.

Rapaz atira os dados: cinco. Puxa uma carta que diz: a esposa chega do salão de beleza com os cabelos recém cortados. 1. Ele repara e elogia na hora: pula as cinco posições. 2. Ele até repara, mas comenta sem muito entusiasmo: avança uma só casa. 3. Ele não repara, mas elogia bastante quando ela chama a sua atenção: permanece no mesmo lugar. 4. Ele não repara e, quando ela conta a novidade, a resposta é: – Nossa, quanto custou isso? Volta para o começo do jogo...

Moça atira os dados: três. Puxa uma carta que diz: (ao telefone) – Querida, vou com o pessoal tomar um chopinho, tá? 1. Ela responde que sim e manda um abraço para a turma: avança as três posições. 2. Ela reclama, mas – vá lá – aceita, desde que ele chegue cedo: avança uma só casa. 3. Ela aceita relutando e deixa nas entrelinhas que isso vai ter um preço: permanece no mesmo lugar. 4. Ela não só proíbe, como ainda fica de mal quando ele chega em casa: volta para o começo do jogo...

Rapaz atira os dados: dois. Puxa a carta que diz: a pia está cheia de louça. 1. Ele toma a iniciativa, lava tudo e ainda prepara um cafezinho: avança as duas posições. 2. Ele faz de conta que não vê, mas atende ao pedido dela para que lave a louça: avança uma só casa. 3. Ele faz o serviço depois que ela insiste muito, e ainda guarda tudo nos lugares errados: permanece no mesmo lugar. 4. Ele chama a esposa de relaxada e, se ela pede para que ele lave dessa vez, de preguiçosa: volta para a casa dos pais, ao menos por uma noite.

Moça atira os dados: seis. Puxa a carta que diz: a TV vai transmitir a final do campeonato de futebol. 1. Ela prepara uma pipoca, veste-se para a ocasião e senta ao lado do marido: avança as seis posições. 2. Ela diz que vai ao cinema e, ao sair, deseja boa sorte ao torcedor: avança uma só casa. 3. Ela fica em casa cruzando propositalmente na frente da TV: permanece no mesmo lugar. 4. Ela marca um compromisso para os dois na mesma hora, e arma uma briga violenta quando ele se recusa a cumpri-lo: se o time for campeão, volta para o começo do jogo. Se não, vai para a ponte que partiu e não volta tão cedo!

Rapaz atira os dados: dois. Puxa a carta que diz: ela quer sexo. 1. Ele busca taças e o espumante que está na geladeira, deixa o ambiente em meia-luz e se desdobra em carícias: avança as duas posições. 2. Ele topa e parte para cima com uma urgência desproporcional: avança uma só casa. 3. Ele entra no jogo, mas mal consegue um empate aos quarenta e cinco do segundo tempo: permanece, perigosamente, no mesmo lugar. 4. Ele diz que está cansado, estressado, deprimido. E já não é a primeira nem a segunda vez... Aí ela pergunta: – Será que tem volta?

Moça atira os dados: quatro. Puxa a carta que diz: ele quer sexo. 1. Ela busca taças e o espumante que está na geladeira, deixa o ambiente em meia-luz e se desdobra em carícias: avança as quatro posições. 2. Ela topa, mas o recebe com mínima reciprocidade: avança uma só casa. 3. Ela, depois de certa insistência, entra no jogo sem nenhum tesão, consultando o cronômetro a cada minuto: continua, fria e estática, na mesma posição. 4. Ela diz que está cansada, estressada, deprimida. Ele suplica. Aí ela relembra que ele sequer reparou em seu novo corte de cabelo: ele volta para o começo do jogo.

22.10.09

Número 340

DESMATAMENTO

Casamento é mata fechada, densa, com delicada diversidade, mas com alguma chance de sufocar. Um estado civil bem diverso ao da solteirice: campo ensolarado e franco, cenário de batalhas para caça e caçador. No campo, o horizonte se mostra pleno, 360° de possibilidades para as mais loucas aventuras. No casamento, resta subir à copa dos sonhos para liberar a visão em todos os sentidos. Mesmo assim, lá não viveremos o tempo inteiro: não somos pássaros, e os sonhos apenas nos iludem com asas de nuvens.

A floresta chamada casamento é para além de sedutora, escondendo no lusco-fusco muitos encantamentos. Só nela, e em nenhum lugar mais, florescem orquídeas raras. A sombra é constante e prazerosa; o anoitecer, aconchegante. Quem conhece as trilhas encontra com facilidade cachoeiras de água pura. Também é lá que estão as árvores de raízes profundas e troncos com seiva perfumada ‒ ah, o amor! Há borboletas e filhos, canto dos passarinhos, cipós para servirem de varal, cheiro forte de terra. É nas cavernas da mata que estamos seguros das tempestades. Difícil mesmo é evitar o surgimento do limo nas pedras do caminho.

Por outro lado, todo homem casado, e toda mulher, antes de se embrenharem na mata, habitaram o campo. Conhecem muito bem a rotina do vento forte, dos rápidos deslocamentos, da vegetação rasteira ‒ composta de beijos orvalhados e pouco comprometidos. A amplidão do céu crivado de estrelas em noites solitárias. As árvores esparsas, nas quais se pode subir de vez em quando: nunca deixamos de sonhar! Eles ainda lembram que no campo era necessário, também, conviver com uma certa dose de perigo ‒ a exposição é típica neste cenário. Talvez seja por isso que os descomprometidos andem sempre em bando. Amigos ‒ nossa! ‒, como se protegem...

Houve um tempo em que estes dois ambientes eram menos permeáveis. Os humanos que se mudavam para a mata fatalmente morriam por lá. Ou, como alternativa, terminavam seus dias nas suaves clareiras da viuvez. Hoje, posso estar até enganado, vejo as pessoas entrando na floresta meio de costas, sem tirar os olhos da saída. Agindo assim, nem bem estão no campo, nem bem no mato. E, sem coragem para mudar de entorno, dificilmente penetram muito fundo. Que cachoeira qual nada! Sai para lá borboleta! Ao diabo com essa raiz que só me faz tropeçar! Êta tronco áspero! É lá fora que brilha o astro rei... Há, também, aqueles que estacionam nas margens ‒ um pé lá, outro cá.

Porém, mesmo quem se aprofunda na floresta pode um dia desejar sair. Ou de lá ser despejado, como se intruso fosse. De um momento para o outro, precisará se expor ao sol aberto, apelando para urgente proteção. Faltará fôlego para as correrias, malandragem na hora de arrumar alimento. Nenhum desespero: trilhar o campo é como andar de bicicleta ‒ descontada a pouca destreza (que sobrava outrora) ninguém desaprende. E mato não tem porta: é só voltar lá para dentro na primeira oportunidade. Ou na segunda, terceira, décima oitava... Pois é: às vezes fica complicado voltar ‒ querer não será o suficiente.

Enfim, nosso tempo está deixando a fronteira do mato com o campo mais frequentada que entrada de formigueiro. Mas essa não é nem de longe a pior (melhor?) notícia. Preocupante mesmo é a derrubada galopante da floresta. Parece que virou moda a idéia de que só o campo aberto é lugar de se colher felicidade. Estarei eu, bicho do mato, fadado à extinção?

15.10.09

Número 339

OBITUÁRIO

Uma querida amiga é fanática pela leitura de Obituários. Ela vê uma singela beleza naqueles resumos de existência, além de uma interessante paridade social: ao lado de um General, empresário ou professora emérita, pode estar uma costureira, um estudante, o fanático torcedor de um time da terceira divisão cuja especialidade era assar churrasco. Isso me fez pensar no caso de a seção de Obituário habitar outras partes do jornal, quem sabe rendendo bons textos. Economia & Negócios, por exemplo:

Depois de uma vida inteira dedicada à comunicação entre pessoas em diversas localidades, faleceu recentemente Telefonia Residencial Analógica, filha de Ligação por Telefonistas e neta do revolucionário Telégrafo ‒ este que, durante sua vida, chegou a sofrer uma séria intervenção ortográfica, tendo extirpado seu ph. DDD, como era conhecida, faleceu em virtude de um severo abalo tecnológico, que vitimou boa parte de sua família: a Ficha de Orelhão, o Telefone de Disco, a impertinente Linha Cruzada e DDI, sua irmã gêmea, esposa de Satélite de Comunicação. No Brasil, esteve casada com o Governo durante grande parte de sua vida, divorciando-se depois de um processo de privatização (para alguns, nem tão amigável). Partiu sem deixar herdeiros diretos vivos. Seu legado foi transferido aos sobrinhos, filhos de DDI e Satélite: Telefonia Digital e Telefone Celular. A comunidade jamais esquecerá a importância de DDD na aproximação entre vizinhos e amigos, na criação de serviços de tele-entrega e no auxílio à Defesa Civil ‒ sempre voluntariosa ao chamar o Corpo de Bombeiros, a Polícia e ambulâncias.

Pode-se dizer que as redações de jornal, as agências de propaganda, os escritórios contábeis e de advocacia, os cartórios, escolas e mesmo as residências jamais serão iguais depois da partida de Máquina de Escrever. Seus movimentos coordenados ‒ de grande engenhosidade mecânica ‒ e ruídos característicos acompanharam as mentes mais brilhantes da humanidade por muitos e muitos anos, registrando todas as idéias e documentos por elas produzidos. Gradativamente aposentada e vendo crescer a importância de Máquina Elétrica (com o prático Corretor Automático a seu lado), mantinha-se útil em repartições desatualizadas por todo lado. Porém, Máquina de Escrever foi atropelada pelo Editor de Texto que, junto com a Impressora de Dados, pilotavam um PC (Computador Pessoal) em altíssima velocidade. Com seu passamento, ficaram órfãos as Fitas de Tinta (Bicolor e Preta), o Curso de Datilografia, o Mimeógrafo e o cooperativo Papel Carbono. Ainda é possível encontrá-los por aí, mas sem o mesmo ânimo.

Contrariando o que faria supor sua pouca idade e encantamento, faleceu obscura e tragicamente Disquete de 5”1/4. Seu irmão mais novo, 3”1/2, está na UTI, sem esperanças de recuperação, enquanto Disco ZIP, o caçula, morreu logo depois de nascer. Foram todos vitimados por uma febre conhecida como obsolescência precoce aguda, doença desenvolvida por carências na capacidade de armazenamento, gerando pouca esperança tecnológica no longo prazo. Visto como símbolo de uma época, a aparência de Disquete 5”1/4 chegou a ser sinônimo de modernidade nos anos 80 (auge de sua utilização). Seus herdeiros convivem com a ameaça constante da mesma febre, que parece ser um mal genético na família Informática. Isso poderia explicar tamanha fertilidade criativa e a pressa com que se renovam, criando filhotes a cada semana: frágeis, um deles há de sobreviver para perpetuar o legado.

8.10.09

Número 338

FÁBULA FUTURÍSTICA

O homem parecia ter alcançado a fronteira final: depois de passar décadas aglutinando informações em bancos de dados e, ao mesmo tempo, desenvolvendo formas de armazená-las em espaços físicos cada vez mais exíguos, conseguira um meio de acessar os dados apenas com o pensamento. Funcionava assim: ao arranhar a pele e ali colocar um robô desenvolvido com nanotecnologia, este saberia chegar, por via circulatória, ao cérebro. Ali, e ligado ao conglomerado de bancos de dados do mundo, o nano robô passaria a ser um portal entre o indivíduo e todo o conhecimento acumulado pela humanidade.

Se o portador do robô pensasse: sânscrito, já saberia se comunicar nesse idioma. Pensasse: física quântica, saberia tudo sobre o tema, desde fundamentos até conceitos avançados. Pensasse: lista telefônica, e teria acesso a qualquer número do planeta. Pensasse: Beethoven, já seria capaz de executar qualquer sinfonia do mestre. Pensasse: energia nuclear, e seria capaz de construir de usinas até bombas. Enfim, não importaria mais o tema, pois todo o conhecimento acumulado estaria disponível ao indivíduo, como se ele conhecesse tudo sobre tudo.

Desenvolvida a tecnologia, a primeira providência foi a de controlar sua disseminação. Afinal, conhecimento sempre fora sinônimo de poder. Porém, nem todos pensavam dessa forma. E, depois de se autoinocular um robô, um dos cientistas envolvidos passou a deter todas as informações sobre o projeto, habilitando-se a fazer robôs piratas. Então, em cada um que recebia essa verdadeira maravilha falsificada, nascia o desejo de produzi-la também, tendo lucro com a comercialização. Por fim, em menos de um ano, a inteligência absoluta havia se espalhado em velocidade viral, com quase a totalidade dos homens transformada em verdadeiros gênios.

Chegara, enfim, o tempo da utopia. Ninguém seria mais do que ninguém, nem melhor, nem teria qualquer vantagem. Todos igualados pelo robô. Grego? Falamos todos. Anatomia? Sabemos todos citar cada um de nossos ossos, ou de qualquer animal. Propulsão a jato? Farmacologia? História da arte? Cálculo estrutural? Informática? Direito? Ninguém mais precisava do outro: sabia tudo. E o conhecimento deixou de ser uma marca de diferenciação, de hierarquia, de poder. Do agricultor chinês ao pescador amazonense; do presidente da ONU ao chefe do cartel colombiano; do príncipe árabe à prostituta de alguma ilha do Caribe, para ninguém mais existiam segredos.

Todas as tentativas de frear o processo acabavam abortadas ‒ durante as reuniões, invariavelmente as informações vazavam. As economias entravam em colapso. Todos sabiam tudo, mas ninguém sabia o que fazer, em quem confiar, para quem ceder o comando. A truculência física começou a fazer a diferença. Adultos começaram a matar crianças, homens eliminavam mulheres, maiores assassinavam menores. A luta passou a ser pela água, pelo alimento, pelo teto, pela roupa do corpo. Um homem de quase dois metros de altura matava a todos indistintamente usando uma marreta, enquanto recitava Pirandello ‒ no fundo, era alguém sensível. Até que mísseis nucleares começaram a alçar voo de todo lugar para todo lado.

Infelizmente, a humanidade sucumbiu com a plena, total e absoluta consciência de que nem todo o conhecimento do mundo seria capaz de transformar o homem em um animal racional. E de que a diferença individual é a chave para a igualdade social.


1.10.09

Número 337

LOQUACIDADE

Elisa estava farta de tanto se queixar. Pela manhã, cutucava o marido enunciando sua primeira reclamação: antes mesmo de desligar o despertador; antes mesmo de saber se chovia ou fazia sol; antes mesmo de lavar o rosto. Aliás, quando chegava até a pia do banheiro, pelo caminho, topava com dois a três motivos para reclamar. Outros muitos eram servidos junto com o café, sobrando para todos, incluindo filhos e cachorro. Ao ficar só, enquanto não chegava a hora de ela sair de casa, queixava-se, no espelho, de si para si. E para quem dos arredores estivesse disposto a escutar.

Elisa se queixava da vida para a colega de trabalho que, não lhe dando ouvidos, somava mais um motivo para as tantas queixas. Reclamava do chefe pelas costas. Pela frente, reclamava da falta de estrutura para mostrar seu potencial. Mas a estrutura nunca mudava, o chefe nunca mudava, as reclamações se repetiam exaustivamente. O máximo que recebera, e de alguém que nem era do seu setor, foi a curiosidade em saber por que razão, afinal, só a escutava se queixando. Elisa, atônita com a pergunta, não soube por onde começar, deixando o interlocutor falando sozinho. Enquanto se afastava, queixava-se de tamanha falta de sensibilidade.

Elisa, péssima idéia, queixava-se do marido para a sogra. A velha só não a chamava de maluca por jamais usar esses termos, mas se fazia entender. Isso enfurecia Elisa mais do que qualquer coisa, acrescentando motivos de sobra para incluir toda aquela família em seu interminável rosário de lamentações. Porém, bastava maldizer seus cunhados e cunhadas para lembrar de milhares de causas para reclamar de seus irmãos. Nem o pai morto escapava da língua afiada de Elisa. Logo ele, um abnegado funcionário público, esteio de honradez em uma repartição venal do município. Por falar nisso, uma de suas queixas recorrentes em velórios era a velocidade com que os amigos e parentes esqueciam dos defeitos de quem morrera. Isso, e as reclamações com o eterno descaso do sistema de saúde.

Elisa se queixava para o padre José. Se tivesse chance, queixaria-se ao bispo, ao cardeal, ao Papa. Este último, por sinal, mal podia esperar: se não fosse tão caro ir até Roma, se o seu salário de fome lhe permitisse uma extravagância tão comezinha para os abonados do condomínio da esquina, o Papa teria muito a escutar. Onde já se viu uma instituição tão importante e poderosa ser descuidada a tal ponto com seus seguidores? E sobraria também para o pároco, pois, fosse o pecado que fosse, ele dava o mesmo ato de contrição e as mesmas três Ave-Marias de penitência. Vai ver, e isso sem dúvida era uma queixa, o padre José não escutava ninguém do outro lado do confessionário.

Até o dia em que Elisa chegou em seu limite. Nem soube direito qual fora a gota d’água, mas a bacia, definitivamente, transbordara. Calou-se, Elisa. Muda despertou, muda lavou o rosto, muda serviu o café. Vestiu-se muda, muda enfrentou o ônibus, muda fez suas obrigações, muda almoçou. Muda entrou em casa de volta, muda parou diante da TV, recolheu-se sem dizer uma palavra. Mudara.

No dia seguinte, o marido perguntou mais de uma vez se estava tudo bem; os filhos mostraram para Elisa o boletim escolar; o cachorro pulou no portão como quem quer festa ou pede carinho. O chefe teceu um elogio incomum ao trabalho do setor, e colega convidou Elisa para juntar-se à turma na sexta-feira, quando costumam tomar um chope antes de ir para casa. A sogra, meio bruxa, intuiu qualquer coisa e mandou a cunhada (estranho, ela sorriu) levar-lhes um pudim de laranja para sobremesa. O mundo agora parecia livre de seus pecados.

Elisa finalmente se fizera escutar.