1.10.09

Número 337

LOQUACIDADE

Elisa estava farta de tanto se queixar. Pela manhã, cutucava o marido enunciando sua primeira reclamação: antes mesmo de desligar o despertador; antes mesmo de saber se chovia ou fazia sol; antes mesmo de lavar o rosto. Aliás, quando chegava até a pia do banheiro, pelo caminho, topava com dois a três motivos para reclamar. Outros muitos eram servidos junto com o café, sobrando para todos, incluindo filhos e cachorro. Ao ficar só, enquanto não chegava a hora de ela sair de casa, queixava-se, no espelho, de si para si. E para quem dos arredores estivesse disposto a escutar.

Elisa se queixava da vida para a colega de trabalho que, não lhe dando ouvidos, somava mais um motivo para as tantas queixas. Reclamava do chefe pelas costas. Pela frente, reclamava da falta de estrutura para mostrar seu potencial. Mas a estrutura nunca mudava, o chefe nunca mudava, as reclamações se repetiam exaustivamente. O máximo que recebera, e de alguém que nem era do seu setor, foi a curiosidade em saber por que razão, afinal, só a escutava se queixando. Elisa, atônita com a pergunta, não soube por onde começar, deixando o interlocutor falando sozinho. Enquanto se afastava, queixava-se de tamanha falta de sensibilidade.

Elisa, péssima idéia, queixava-se do marido para a sogra. A velha só não a chamava de maluca por jamais usar esses termos, mas se fazia entender. Isso enfurecia Elisa mais do que qualquer coisa, acrescentando motivos de sobra para incluir toda aquela família em seu interminável rosário de lamentações. Porém, bastava maldizer seus cunhados e cunhadas para lembrar de milhares de causas para reclamar de seus irmãos. Nem o pai morto escapava da língua afiada de Elisa. Logo ele, um abnegado funcionário público, esteio de honradez em uma repartição venal do município. Por falar nisso, uma de suas queixas recorrentes em velórios era a velocidade com que os amigos e parentes esqueciam dos defeitos de quem morrera. Isso, e as reclamações com o eterno descaso do sistema de saúde.

Elisa se queixava para o padre José. Se tivesse chance, queixaria-se ao bispo, ao cardeal, ao Papa. Este último, por sinal, mal podia esperar: se não fosse tão caro ir até Roma, se o seu salário de fome lhe permitisse uma extravagância tão comezinha para os abonados do condomínio da esquina, o Papa teria muito a escutar. Onde já se viu uma instituição tão importante e poderosa ser descuidada a tal ponto com seus seguidores? E sobraria também para o pároco, pois, fosse o pecado que fosse, ele dava o mesmo ato de contrição e as mesmas três Ave-Marias de penitência. Vai ver, e isso sem dúvida era uma queixa, o padre José não escutava ninguém do outro lado do confessionário.

Até o dia em que Elisa chegou em seu limite. Nem soube direito qual fora a gota d’água, mas a bacia, definitivamente, transbordara. Calou-se, Elisa. Muda despertou, muda lavou o rosto, muda serviu o café. Vestiu-se muda, muda enfrentou o ônibus, muda fez suas obrigações, muda almoçou. Muda entrou em casa de volta, muda parou diante da TV, recolheu-se sem dizer uma palavra. Mudara.

No dia seguinte, o marido perguntou mais de uma vez se estava tudo bem; os filhos mostraram para Elisa o boletim escolar; o cachorro pulou no portão como quem quer festa ou pede carinho. O chefe teceu um elogio incomum ao trabalho do setor, e colega convidou Elisa para juntar-se à turma na sexta-feira, quando costumam tomar um chope antes de ir para casa. A sogra, meio bruxa, intuiu qualquer coisa e mandou a cunhada (estranho, ela sorriu) levar-lhes um pudim de laranja para sobremesa. O mundo agora parecia livre de seus pecados.

Elisa finalmente se fizera escutar.

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