30.6.10

Número 376

ENQUANTO TEMPO

Por seres tão inventivo e pareceres contínuo

Tempo, tempo, tempo, tempo,

És um dos deuses mais lindos

Caetano Veloso

Reparando bem, olhando daqui e dali, a crônica nada mais é do que o texto enquanto tempo. Ou, de trás para adiante, o tempo enquanto texto. Uma volta de ponteiros na página: sempre igual, sempre diferente, pois em cada passagem se refere a outro período. Um gênero literário para todos carregarmos no pulso e consultar quando der vontade, seja na forma analógica (impresso) ou digital. Por quê? Pela simples razão de ser preciso. Quando? Assim que tivermos uma brecha em nosso próprio tempo.

Como o saltitar dos segundos, a crônica é feita de minúcias, de miudezas. Grãos de vida escorrendo na ampulheta da História. Num piscar de olhos, o tema aparece diante do escritor e o seduz. Depois, não importa quantas horas ‒ ou mesmo dias ‒ serão necessários para que ele aborde o assunto em seu blog ou na coluna do jornal: quando o texto ficar pronto, a instantaneidade será enfim restabelecida. Então, o tempo da crônica estará de volta ao corriqueiro pra já.

Mas, se a crônica é um texto enquanto tempo, a que tempo nos referimos? Depende. Pode ser o passado: muitas crônicas são escritas a partir de lembranças do autor, vindas de uma história que escutou de um amigo ou mesmo resgatando um lugar que não mais existe. Pode ser, também, o tempo presente, para comentar a notícia que deu agora mesmo no rádio ‒ você ouviu? E nada impede que uma crônica tome por base uma pesquisa ou descoberta científica e, assim, projete nosso futuro.

Por falar nisso, existem crônicas que morrem com o tempo, enquanto outras sobrevivem a ele. Em um extremo, o texto que o cronista escreve sobre um fato tão, tão, tão imediato que, se não publicar no dia, nunca mais publicará: perde o sentido, morre antes de nascer. No outro, obras sublimes como um poema, eternas como um romance, contundentes feito contos ‒ crônicas para serem lidas por mais de uma geração com o mesmo prazer, com igual atualidade, fruição e pertinência. Entre os extremos, retratos sempre fiéis ao nosso tempo, imagens para nunca mais e para sempre.

Na hora de escrever, o cronista poderá fazê-la parecer um conto, um artigo, uma poesia. Algumas nos deixarão com aquela inquietação típica em quem gosta de classificar tudo: será isso uma crônica, mesmo? Ela também poderá se parecer conosco ou ser a cara de alguém que conhecemos. A crônica pode contar uma história sua, minha ou nossa, assim como você tem pleno direito de discordar do cronista em número e grau. Uma só coisa a crônica não pode ser: infiel ao tempo. Assim, estará traindo sua essência, sua magia e a própria razão de existir.

Citando novamente Caetano, (...) te ofereço elogios, tempo, tempo, tempo, tempo, nas rimas do meu estilo.

24.6.10

Número 375

ATÉ QUE A MORTE NOS SEPARE

Eu me amo, eu me amo,

Não posso mais viver sem mim

Ultraje a Rigor

A adolescência é o momento ideal para todos se casarem. Isso já nos primeiros sinais de puberdade ‒ quanto mais cedo, melhor. Respirar fundo, concentrar-se e falar muito sério: Prometo ser fiel, amar-te e respeitar-te, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, por todos os dias de minha vida, até que a morte nos separe. Depois, encontrar no fundo dos olhos daquela pessoa que está ali, do outro lado do espelho, um olhar de aceitação. Os desafios que aguardam quem entra na juventude, hoje mais do que nunca, serão melhor superados depois deste casamento.

A fidelidade, por exemplo, será testada muito rapidamente. Basta o menino ou a menina estar diante de um dos tantos dilemas de consciência típicos da idade: convidam-no para entrar no carro que fará um racha, para comprar uma garrafa de vodka, dar um tapinha em um cigarro artesanal, subir para um apartamento desconhecido e entrar numa festa para a qual não se foi convidado... A lista é grande! Então, alguém lá no fundo lhe diz: não vá, não faça, pode dar problema. Caso lembre que prometeu para esse mesmo alguém, no espelho de casa, ser-lhe fiel, poderá recusar sem medo, numa boa, até agradecendo. Mais tarde, se a maturidade o aconselhar diferente, já não será reflexo de inocência.

Amar-se e se respeitar também são votos bastante úteis. Quem tem uma auto-estima elevada dificilmente cairá nas armadilhas ou nas chantagens dos aproveitadores, pessoas que sempre escolhem subjugar os mais frágeis. Estará imune, ou ao menos fortalecido, contra apontamentos pejorativos (baixo, gordo, fraco, feio) e mais consciente de que as diferenças existem para enriquecer nossa vida. Basta perguntar-se: será que o mundo seria melhor se todos fossem iguais, pensando da mesma forma, vestindo as mesmas roupas? Depois de conquistar uma relação amorosa e de muito respeito consigo, ficará mais fácil e mais saudável lidar com o outro, com suas necessidades e diferenças.

Quando prometemos, lá aos doze ou quatorze anos de idade, estar conosco na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, inoculamos a vacina contra aquele que é um dos mais danosos sentimentos: a autocomiseração. E estar imunizado significará lidar com bom humor, coragem e leveza frente a uma série de pequenos infortúnios típicos da juventude. Ou seja, teremos decepções amorosas e superaremos; veremos frustrado um plano (vestibular, viagem, estágio), mas tentaremos de novo; assistiremos ao lançamento de um produto eletrônico de última geração e nem assim jogaremos o nosso fora; sairemos de casa sempre com o dinheiro contado, porém dispostos a nos divertirmos, etc. Enquanto se é criança, os pais fazem de tudo para que nada nos falte. Na juventude, conviver com a falta é buscar nela o estímulo para as conquistas.

Escrevendo assim parece fácil, mas não é. Quem disse que viver é uma barbada? Diante das agruras, nada é mais reconfortante do que uma boa companhia. Por exemplo, e antes de tudo, a companhia da nossa consciência. Quem estiver casado com a imagem do espelho, sendo-lhe fiel e parceiro, ainda mais tendo formado esse laço em boa idade, estará mais preparado para o conjunto de decisões do amadurecimento. Inclusive na hora de impor a si necessárias mudanças, já que ninguém é perfeito. O sacerdote deste casamento é o livre arbítrio. Os filhos, as consequências de nossos atos. E o prazo? Até que a morte nos separe.

16.6.10

Número 374

ESSÊNCIA

Para o Irmão Arnaldo

(1913-2010)

É lendária a história na qual subimos, após muito sacrifício, até a mais alta das montanhas para encontrar o homem sábio. Com ele, estariam guardados os segredos do sucesso, da felicidade, do amor, da paz, da harmonia, enfim, da vida em sua plenitude. No entanto, cada um que alcança tal cume, depara-se com alguém em vestes simples, sem domínios ou bens. Nem servos, luxo, conforto, tecnologia, badalação. Estranhamente, são reconhecidos no homem atributos que construíram sua lenda. E, apenas então, defrontados com o óbvio, todos compreendemos a diferença entre o aparente e o essencial.

Nunca fui à montanha. Quis o destino que a montanha viesse até mim, oferecendo o privilégio de conviver, desde a mais tenra infância, com um homem sábio de carne e osso, mas do qual emanam verdadeiras lendas. Estou falando do Irmão Arnaldo Isidoro, ou, para mim, apenas tio Irmão, falecido dia dez de junho aos noventa e seis anos. Em seus oitenta anos de vida religiosa, recém comemorados em singela missa na Casa de Saúde dos Irmãos Lassalistas, Irmão Arnaldo guiou a vida de todos os que estiveram consigo, compartilhando sem medir sacrifícios ‒ e sem auferir proveito pessoal ‒ o divino dom da sabedoria.

É fácil imaginar que, caso optasse pelo caminho do empreendedorismo, o Irmão Arnaldo, José Fridolino Schmitz de nascimento, teria se tornado um homem rico. Quem sabe riquíssimo. Sua capacidade administrativa esteve comprovada em toda biografia, seja em Minas Gerais, São Paulo ou no Rio Grande natal. Por exemplo, nos muitos anos na direção do Pão dos Pobres de Santo Antônio, instituição responsável pelo acolhimento e educação de milhares de meninos órfãos e carentes em Porto Alegre. Ciente de que os atributos do espírito sucumbem diante do frio, da fome e do abandono, dedicou sua energia para garantir o conforto e a educação das crianças, formando um legado de riqueza que certamente não caberia em medidas de ouro.

Também a política deixou de contar com alguém de carisma e capacidade de liderança incontestável. Exilado das funções públicas pela eleição do caminho católico, nem assim Irmão Arnaldo deixou de circular em todas as esferas de influência. Na Casa Lassalista, foi Provincial por duas oportunidades. Durante sua rotina, recebia e era recebido por governadores, prefeitos, deputados e senadores sem visar promoção pessoal, apenas em pleitos humanitários. Mesmo assim, ou talvez por isso, recebeu diversas homenagens, com destaque para a Medalha Cidade de Porto Alegre, em 1985; Cidadão Emérito de Porto Alegre, em 1988, e Professor Emérito, no mesmo ano.

Se a constituição de família estivesse no destino do tio Irmão, dou o testemunho de que ele seria um pai inigualável. Primeiro, pelo amparo que sempre ofereceu aos irmãos e sobrinhos, assumindo com dedicação paternal a orientação de todos nós. Mas, principalmente, pela vida de educador, assumida desde os tempos de juventude, na sala de aula, até o último dia dedicado ao orfanato. Incontáveis consideram-se como sendo seus filhos.

Estamos, por fim, todos órfãos da companhia do Irmão Arnaldo, mas carregaremos adiante seu legado e seu amor. Foi um homem que partiu do mesmo modo como viveu, sem riqueza ou poder. Em suas últimas palavras, a derradeira e sublime lição: olhava em nossos olhos e dizia “muito obrigado”. Sim, Deus sabe que apenas agradecia aquele a quem devemos tanto. Alguém que nos poupou até mesmo do esforço de subir a mais alta das montanhas em busca da sabedoria em sua mais pura essência.


10.6.10

Número 373

GUIA DO COMENTARISTA INSTANTÂNEO

É chegada a Copa do Mundo e você, que não gosta, entende ou acompanha futebol, na certa será convidado para assistir os jogos com os colegas de trabalho. Pior: com o chefe. E agora? Como fazer amigos e influenciar pessoas em uma situação tão adversa? Pois tenha sucesso e garanta seu status com o Guia do Comentarista Instantâneo, uma compilação de frases que jamais deixarão você passar por ignorante. Essa é a mais perfeita combinação de obviedades e platitudes futebolísticas ‒ expressões que farão sentido em qualquer partida. Para tanto, basta saber se o jogo está empatado, se o seu time está perdendo ou ganhando. Dica: o placar costuma aparecer no alto da tela da TV. Boa sorte!

1. Enquanto o jogo está zero a zero:

* Quem abrir o placar forçará o oponente a sair mais para o jogo.

* Esse empate nos dá a falsa impressão de termos a partida sob controle.

* Não dá para vacilar na defesa...

* Ainda está faltando um pouco de qualidade no último passe. (coringa)

* O gol que não marcarmos pode fazer falta logo adiante.

* Em jogo assim, é preciso ganhar o meio de campo.

* Ligação direta entre defesa e ataque é pouco eficaz: o adversário estará sempre de frente para a bola.

* Estou preocupado: quem não faz, toma. (um clássico)

* Centro-avante sozinho é meio gol.

2. Ao levar um gol:

* Eu disse que não se podia vacilar na defesa!

* O melhor é empatar antes que eles gostem do jogo! (e alguém odeia estar ganhando?)

* Precisamos avançar os alas, mas sem descuidar da cobertura.

* Ainda tenho a esperança numa bola parada...

* Tem que ter mais aproximação: fazer o dois/um. Desloca e recebe!

* Só não deixem os defensores no mano-a-mano!

3. Se empatar:

* Eu disse que seria de bola parada! (se o gol nasceu de falta ou escanteio)

* Eu disse que precisava de aproximação! (se foi em troca de passes)

* O caminho era lançamento nas costas da zaga! (se foi ligação direta, mesmo incorrendo em clara contradição – o gol apaga tudo).

* Agora estamos mais perto da virada.

* Onde entrou um (gol), entram mais.

* Tá, mas ainda não estamos ganhando... (dã!)

4. Quando se está na frente no placar:

* Tem jogo pela frente, um a zero é perigoso, não dá para relaxar...

* Dois a zero é o placar mais perigoso: se achar que já ganhou, babaus!

* É, mas não adianta nada se eles não souberem por que estão ganhando.

* Aiaiai... continuo com medo daquele gol perdido: pode fazer falta depois.

* Agora é só cercar. Mas sem falta! Sem falta!

* Precisam compactar mais o meio de campo (coringa).

* Se não tomarmos nenhum gol, já ganhamos! (óbvio dos óbvios)

5. Sobre a arbitragem:

* Na Libertadores isso nem seria falta.

* Só quero vê-lo respeitar os mesmos critérios... (diz tudo sem dizer nada)

* Cuidado para não fazer pênalti – esse juiz, não sei...

* O cara ficou pendurado no cartão amarelo! No segundo, rua!

* Olha lá: quem dava condições foi o mesmo que levantou a mão pedindo impedimento! (é quase sempre assim)

* A zaga não pode ficar em linha: desconfio deste bandeira.

* Quero só ver quantos minutos teremos de desconto. Quero só ver!

Terminada a partida, volte para a lista e mude algumas palavras por sinônimos, inverta a ordem direta, ou mesmo decore tudo igual para o jogo seguinte. Afinal, bastará acrescentar: Precisam compactar mais o meio de campo! Outra vez!

4.6.10

Número 372

DIA BRANCO

Se você vier, pro que der e vier, comigo
Eu lhe prometo o sol
Geraldo Azevedo & Renato Rocha


Enquanto minha esperança respira por aparelhos na UTI, a cidadania surge com um remédio novo, capaz de retardar sua indesejada morte. Leio no jornal que um grupo de estudantes universitários reuniu-se com vassouras, baldes, água e detergente para fazer um ato de protesto contra a poluição. Como uma “despichação”, limpam a fuligem das paredes do Túnel da Conceição, no centro da cidade, grafando com o branco original: “por uma Porto Alegre limpa”. A polícia, alertada para o fato de que jovens estavam pichando as paredes, chega ao local em tempo de impedir o crime e deter os contraventores. Porém, os policiais constatam a natureza profilática da ação e não só deixam os estudantes livres, como permitem que eles terminem sua mensagem.

Tudo nesta notícia me agrada: meninada com boas idéias, iniciativa, coragem e pensamento coletivo; policiais inteligentes e sensíveis, subvertendo o conceito de truculência que tanto prejudica a corporação; jornalistas ágeis, e, como agora a parede foi lavada, poder público com capacidade de reação. Por algumas horas, a capital gaúcha escutou um coração batendo abaixo dos escombros de incompetência, desrespeito e frieza que soterram as relações humanas nos grandes centros urbanos. Foi apenas um pedido de socorro. Porém, este resgate pontual indica que há muita vida para ser redescoberta.

Se a moda pega, daqui a pouco haverá quem empunhe roçadeiras para escrever numa praça abandonada: mantenha-me! Filme, fotografe e lance na imprensa e na internet. Constrangida, a prefeitura tomará providências. Da mente criativa dos jovens, ainda podem surgir, também, iniciativas para restaurar pontos de ônibus degradados, monumentos depredados, telefones públicos que não mais funcionam, escolas pichadas, sujeira acumulada em terrenos baldios. Comunidades podem, finalmente, encontrar caminhos para denunciar o tráfico de drogas, a prostituição infantil e a inoperância dos hospitais e postos de saúde, por exemplo. O poder público, se não toma a dianteira em ações esperadas pela coletividade, precisará correr atrás, sob pena de ficar ainda mais desacreditado.

Quem imagina que isto é um sonho, uma utopia, não conhece as iniciativas do pessoal da Fundação Thiago de Moraes Gonzaga e sua Vida Urgente. Um verdadeiro exército de jovens e adolescentes, capitaneados pela Fundação, promove ações criativas, vigilantes e esclarecedoras, visando à prevenção de acidentes de automóvel. O objetivo é evitar que a direção irresponsável, o uso de álcool e de drogas, combinados com a fiscalização pública ineficiente, continuem ceifando vidas de jovens em quantidade absurda pelo país. Cada uma das borboletas pintadas no asfalto, indicando onde um jovem faleceu, traz a todos a lembrança de quanto temos a perder caso a guerra no trânsito não encontre seu fim.

Políticos atrasados e populistas ainda insistem em se vangloriar daquilo que dão ao povo. Cada vez que são confrontados com uma arrecadação de impostos digna de primeiro mundo, combinada com contrapartidas de fazer vergonha a uma nação miserável, rebatem com o discurso de que deram isso e aquilo. Minha esperança sairá de vez da UTI, revigorada e saudável, quando o jovem brasileiro compreender que os gestores públicos nada dão ‒ apenas (no máximo) devolvem. E que a esfera política não concentra o monopólio das soluções nacionais, muito pelo contrário. Uma população protagonista, que faz sua parte, que preserva e fiscaliza os bens públicos, que conhece seus deveres e direitos, é o branco sufocado debaixo da fuligem do Túnel da Conceição. É Porto Alegre, Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Recife, Manaus ‒ todas nossas cidades ‒, bem no fundo, limpas. É o que deveria ser Brasília.