30.7.10

Número 380

FIOS DE ESPERANÇA

Conhecer Montevidéu, assim tão tarde como aconteceu comigo, apenas fez crescer a vergonha que eu já tinha de nunca ter estado lá. Desde os primeiros metros na capital uruguaia, a arquitetura bem preservada grita ao visitante de primeira viagem: viu só o que você estava perdendo? Soma-se, ainda, o afeto e a simpatia dos nossos vizinhos para com os brasileiros, uma rede hoteleira compatível com qualquer poder aquisitivo, o trânsito sereno, os museus, as lojas e atrações em geral. Para piorar, só o fato de esta cidade estar a míseros oitocentos quilômetros de onde moro... Porém, de tudo o que me enterneceu – e não foi pouca coisa – algo saltou à vista: a capital do Uruguai (aliás, o Uruguai inteiro) é zona de preservação ambiental de um ser que está em vias de extinção. O bigodudo.

Com um pouco de acuidade visual, sempre haveremos de encontrar bigodudos em todo o planeta. Há bigode alemão, chinês, mexicano, argentino, texano, africano, russo, espanhol, francês, português (o único unissex)... No Brasil, também vemos um bigode aqui e outro ali, especialmente no Rio Grande do Sul. A própria estátua do Laçador, figura altiva que recepciona os visitantes de Porto Alegre, é um gaúcho pilchado a contento: da bota de garrão de potro até o vasto bigode. Por isso, não se pode afirmar que os bigodudos se foram da face do planeta. Mas é evidente seu rarear. Bom, menos no Uruguai.

Quase a metade dos garçons de Montevidéu, por exemplo, usa bigode. E também os motoristas de táxi que, além de cinto de segurança, carregam bigodes para afiançar penhor. Entre vendedores ambulantes, feiristas, aposentados passeando pela Rambla, trabalhadores do porto e frequentadores dos bares e cafés, a proporção pode facilmente chegar aos cinquenta por cento de peludos. O próprio funcionário aduaneiro que nos recebeu em Rio Branco ‒ separada da brasileira Jaguarão por uma linda ponte ‒ ostentava bom bigode. Isso já era um indício que desprezei. Porém, mesmo com tamanha representatividade, um dado preocupa: os bigodudos estão envelhecendo e há poucos deles entre os jovens. Quase nenhum, aliás.

Chegamos ao ponto: fios de barba continuam nascendo debaixo do nariz de todos os homens. Mas em um mundo globalizado, até o menino uruguaio, acostumado a ver o bigode do pai, do tio e do avô, tem dificuldade de se imaginar usando um igual. Na TV e no cinema, quase ninguém mais usa. E se as meninas suspiram por rapazes de cara lavada, a vaca vai para o brejo de vez: não há ímpeto tradicionalista que suplante a necessidade biológica de reprodução. O que pode estar acontecendo no Uruguai ‒ aqui a esperança ‒ é a adoção madura do bigode. Isto é, depois de casar e ter filhos, o uruguaio resolve tomar as rédeas do destino e deixar crescer o desejado bigode. Uma espécie de rebeldia às avessas, e que salva o bigodudo da extinção.

Confesso que em minha (duradoura) fase imberbe, sonhava um dia usar bigode. Via em fotos antigas que um exemplar dele nascera no rosto do meu pai ainda na juventude, acompanhando-o por toda a vida. Quis o destino, porém, legar-me pouca barba. E, em uma época em que a moda era manter limpíssimo o espaço entre os lábios e o nariz, pior seria usar um quase bigode (sujeira de feijão, conforme ditado antigo). Hoje, talvez os fios que tenho já estejam em quantidade compatível com a estética ‒ fato reforçado pela predominante tendência masculina do estilo barba por fazer. Mas depois de tantos anos de cara limpa não sei se me reconheceria no espelho. Sinto que para usar bigode, farto ou miúdo, só partindo para morar no Uruguai ‒ algo que a formosa Montevidéu, com seu charme sedutor, convida.

19.7.10

Número 379

ONDE ESTÁ A FORTUNA?

Ser milionário é possuir uma mansão. Ou melhor, duas, três mansões. Um palácio? Quem sabe ser dono de uma ilha, ou mesmo de fazendas que, facilmente, poderiam ser confundidas com países europeus pela extensão. Vários apartamentos em Nova Iorque, Paris, Londres, Tóquio... Prédios inteiros nos endereços mais valorizados do mundo. Lá, obras de arte dignas de constar em catálogos de qualquer museu de primeira grandeza. Vistas de cartão postal em todas as janelas. Sim, é possível medir a fortuna de alguém por suas posses imobiliárias.

Por outro lado, milionário que é milionário tem aviões. Pássaros de metal em cujo interior habitam avanços da engenharia (velocidade, autonomia de voo, segurança) e muito luxo. No ar, escritórios, motéis, salas de ginástica, centros de entretenimento. Ou brinquedos caros: jatos esportivos para poucas pessoas e muita emoção. Helicópteros podem ser um bom indicativo de fortuna ‒ nada de estar sujeito às intempéries do trânsito das metrópoles. Automóveis blindados, luxuosos, raros, exóticos... Milionários, quando em quatro rodas, igualmente voam, e isso também pode ser uma noção de ganhos nas alturas.

Porém, um amigo trouxe uma medida muito mais sensível, muito mais sutil e arejada de se descobrir se alguém é realmente milionário. Ela lhe foi confidenciada por um arquiteto ‒ aquele raro tipo de profissional que casa conhecimento técnico com sensibilidade artística. E, magistralmente, ela provém de um gesto prosaico, habitat natural da crônica. Para tanto, me pediu para visualizar a cena:

Passos tranquilos cruzam um lobby deixando rastros de reverberação. Entram em uma sala ampla, cujos ambientes combinam com harmonia o clássico e o contemporâneo. A luz está perfeita e o aroma é de flores. O dono dos passos, seja qual for a hora do dia ou da noite (de qualquer fuso horário do planeta), apanha um copo e ruma certeiro até o balde de gelo no canto da sala. Abre a tampa e, com uma das mãos, retira três pedras de gelo totalmente secas e soltas uma das outras. O tilitar das pedras no cristal provoca um pequeno rufar enquanto dançam. Deseja um drinque.

Quem já guardou pedras de gelo no baldinho, ou conhece um pouco de física, sabe que a natureza conspira contra a cena descrita. Gelo ao tempo, antes de virar água, tende a fundir-se. O verdadeiro milionário conhece leis da física. Mas não imagina que vá molhar os dedos ou precisar escavar da rocha uma pepita translúcida de frescor. Ele é movido pela certeza transcendental de que, dentro de um balde de gelo, haverá apenas pedras de gelo. E há! Alguém, em algum momento, das entranhas da mansão, estará vigilante para que o dono da casa encontre boas pedras de gelo no baldinho. Agora e sempre, sem jamais ser surpreendido por uma insônia da madrugada ou chegada extemporânea. Secas e soltas, prontas para tilitar.

Dinheiro transbordando, posses deslumbrantes, brinquedos caros de gente grande, obras de arte, lindas mulheres... Tudo pode ser falso ou transitório. Escravizador até, na medida em que a ânsia de acumular riquezas seja tamanha que a vida acabe em segundo plano. Também um belo haras, uma fundação no nome do pai, lugares reservados nos restaurantes da moda e nos clubes exclusivos, iates, dependendo da pessoa, serão apenas fardos. Na verdade, na essência, no fundo do fundo, um milionário legítimo é aquele que mergulha a mão em seu baldinho de gelo sem olhar. E lá, não importa onde ou quando, obedientes, estarão pedras secas e soltas. Santé!

15.7.10

Número 378

EXPLORANDO A CAMADA PRESSÁGIO

Em vinte de abril, ao explodir a plataforma marítima de extração de petróleo Deepwater Horizon, teve início aquele que já se inscreve como o maior desastre ambiental da história norte-americana. A mancha de óleo que devasta uma área gigantesca do Golfo do México acarreta um prejuízo na ordem dos milhões de dólares para a empresa British Petroleum (BP), mas de incalculável repercussão para o meio ambiente. Em virtude de um vazamento que pode bater na casa dos 60 mil barris por dia, e que já dura quase três meses, verdadeiras operações de guerra se instauraram na região, envolvendo toda a comunidade científica, em busca de um modo de estancar a fuga de óleo. Paralelamente, esforços de mesma proporção visam dirimir seus efeitos maléficos, recolhendo o óleo derramado, impedindo que a mancha se alastre e salvando os animais já vitimados.

Nossa brasileiríssima Petrobras é reconhecidamente uma das mais competentes empresas multinacionais dedicadas à prospecção e exploração de petróleo em águas profundas. No mais recente êxito de suas pesquisas, foram descobertos mananciais expressivos de óleo na altura da camada pré-sal. Em razão disso, para breve nosso país poderá fazer parte do seleto grupo dos grandes produtores de petróleo. No momento, claro, em que a tecnologia permitir a extração desta riqueza ‒ algo que está a caminho, com certeza. Com tanta tradição e conhecimento, era de se esperar que os engenheiros, técnicos e cientistas brasileiros estivessem assessorando de alguma forma os apavorados ingleses por conta do desastre da Deepwater Horizon. Imaginei a manchete: jeito brasileiro impede catástrofe ambiental. Como não tenho notícias de nada relevante neste sentido, fiquei com uma pulga atrás da orelha.

Sempre que estou sobre uma ponte, bendigo os engenheiros. Diante de uma plataforma marítima de exploração de petróleo, então, só me falta propor a canonização destes profissionais. Construções que em tudo se assemelham àquelas idealizadas por escritores de ficção científica, tais plataformas abrigam o que há de mais avançado em termos tecnológicos. Também são locais em que se trabalha com níveis de segurança notáveis, respeitando normas rígidas no que diz respeito à prevenção de acidentes. Sou fã incondicional dessa turma! Porém, mesmo com tudo isso, o desastre no Golfo do México acende uma luz vermelha a brilhar em nossa costa. Teríamos nós, brasileiros, recursos financeiros e humanos para fazer frente a uma tragédia de igual proporção? E os acionistas da Petrobras: aguentariam os prejuízos? Para o bem da natureza e para a felicidade geral da nação, gostaria que as respostas fossem que sim. A bem da verdade, temo que não.

Tais presságios não significam que um acidente abalará alguma de nossas plataformas petrolíferas, longe de mim! Muito menos causará um desastre ambiental comparável ao que estamos testemunhando na costa norte-americana. O problema é que, se acontecer, um país que deve ao povo investimentos adequados em educação, saúde, transporte coletivo, segurança e infraestrutura, terá cacife para fazer frente às demandas necessárias? O discurso de potência econômica emergente combina com as reais possibilidades de arcar com eventuais contratempos?

Confesso que estaria mais seguro se a comunidade científica brasileira concentrasse mais investimentos, competência e inventividade em fontes de energia ecologicamente limpas e seguras ‒ vento, sol, marés... Em um país continental, no maior depositário de água doce do planeta, para quem guarda verdadeiros tesouros em termos de biodiversidade, por tudo o que vem acontecendo em consequência da pesada mão do homem, valerá a pena correr tantos riscos investindo cada vez mais em uma matriz energética que deve ser abandonada? Faltam respostas: infelizmente, minha sondagem não é profunda o bastante para ultrapassar a camada presságio.

7.7.10

Número 377

BALANÇO AFRICANO

Existem duas formas de analisar em forma de balanço os resultados da Seleção Brasileira de Futebol ‒ e de seu treinador ‒ em sua passagem pela Copa do Mundo 2010: créditos e débitos nas colunas graças a e apesar de. Quem gosta do Dunga, respeita seu trabalho, valores e ideias, tende a repousar as múltiplas conquistas na coluna graças a, enquanto a coluna apesar de guardará as derrotas, problemas e decepções. Quem desgosta do Dunga, não concorda com seus pensamentos, ações e métodos ‒ odeia-o até ‒, fará o movimento contrário.

Os fãs do ex-capitão serão rápidos em contabilizar as 42 vitórias nos 60 últimos jogos na coluna do graças a. Lá estarão, também, os títulos da Copa América com uma das melhores campanhas de todos os tempos. A Copa das Confederações, as goleadas inesquecíveis, como aquela sobre Portugal, uma boa Olimpíada e o espírito de equipe também estarão na coluna graças a, bem como o resgate do necessário apego à camisa amarela de nosso selecionado ‒ ou alguém esqueceu o enfado que dominava nosso último time, enjoado de tanto dinheiro, fama e badalação? Para a coluna do apesar de, restarão algumas derrotas (6), a desclassificação perante a Holanda e o evidente medo de ousar.

Quem considerou a nova Era Dunga ‒ agora como técnico ‒ um fracasso, sob pena de ser desonesto, jamais esquecerá os números positivos. Porém, creditará tudo na coluna do apesar de. Afinal, quem mais além do Brasil seria capaz de abastecer a sua e tantas outras seleções com atletas de alto nível? Quantos craques e bons jogadores ficaram de fora dos 23 escolhidos, todos capazes de mudar os resultados? Assim sendo, ganhar certames menores seria mera obrigação. Algo que um poste faria também, se fosse escalado como técnico. Mas as derrotas, essas não: elas estariam na coluna do graças a, com todo (de)mérito. Principalmente a última, nas quartas de final da Copa do Mundo. Graças a Dunga, contra aquilo que parecia ser um consenso nacional, os meninos do Santos ficaram assistindo a Copa no Brasil. E morremos por falta de talento.

O temperamento de Dunga, sua eterna postura defensiva e firme, também é algo que cabe em uma coluna ou outra. Quem aprecia tal retidão, considera que perdemos em 1990 apesar dela e, graças a ela, vencemos em 1994. Estranhamente, os mesmos acontecimentos estarão creditados em colunas opostas por aqueles que não gostam da maneira dunguiana de encarar o esporte e a vida. Uns e outros, porém, concordam em um ponto: precisa ser muito Dunga para batizar uma geração fracassada e, logo depois, tornar-se o capitão do time que erguerá a taça. Na sequência, haja coragem para aceitar o desafio de treinar um novo grupo, abandonando o conforto de estar ‒ em parte ‒ redimido, sabendo que um só entre os 32 selecionados será campeão.

Dunga realmente não é alguém que habita os meio-termos. Com ele, tudo parece ser oito ou oitenta. Por isso, entre os méritos e as culpas, poucos comentaristas esportivos escaparão da armadilha de personalizar o debate, dividindo-se ‒ dividindo-nos ‒ entre os que gostam e os que desgostam do técnico. E engordarão e emagrecerão as colunas do graças a e do apesar de conforme a simpatia. De forma indelével, esse rapaz escreve com letras maiúsculas seu nome na história do futebol brasileiro. Passarão muitas décadas e, ainda assim, o debate sobre a personalidade de Dunga e sua trajetória será quente. Ainda mais que novos capítulos ainda estão por vir, já que o protagonista nem chegou aos cinquenta anos de idade.

Antes de concluir, é preciso definir meu ponto de vista nesse balanço de Copa. Julgo que tudo, entre vitórias e derrotas, aconteceu graças ao Dunga, sua comissão técnica, seu grupo de jogadores; em pleno acordo com as deliberações de vestiário e coerente com as atitudes em campo. E tudo também se deu apesar deles. Afinal, cantando outro hino, estavam adversários imbuídos do mesmíssimo desejo de vencer, beneficiados/prejudicados/regidos pela absoluta falta de lógica do futebol. Escalando Fernando Pessoa improvisado em raciocínio lateral, analisar o futebol é preciso, jogar bola não é preciso.