24.2.12

Legado das horas

Número 461

Rubem Penz

A Invenção de Hugo Cabret, baseado no livro homônimo de Brian Selznick e dirigido por Martin Scorsese, filme indicado para 11 categorias no Oscar de 2012, é uma obra imperdível por muitos motivos. É belo, divertido, tocante. Sem livrar a infância de sofrimento nem a maturidade de amargura, consegue ser um libelo de esperança. Como as peças de uma máquina, cada personagem cumpre sua função na trama. E tudo funciona muito bem!

Hugo (Asa Butterfield), órfão de um relojoeiro (Jude Law), vive na Paris do entre guerras. Habita as entranhas da estação férrea cumprindo o serviço do sumido tio alcoólatra: a manutenção dos diversos relógios do lugar. Alimenta-se do que consegue suprimir das bandejas das cafeterias, escapando do olhar vigilante do inspetor, interpretado com humor contido por Sacha Baron Cohen. O menino também rouba peças de uma pequena oficina de brinquedos para tentar consertar o único legado do pai: um misterioso autômato que sabe escrever. Conhece Isabelle (Chloe Moretz), sobrinha de Georges, dono da oficina – personagem que cresce muito na trama e é interpretado por Ben Kingsley. Hugo e Isabelle experimentam muitas aventuras.

Lá pelas tantas da trama, enquanto as crianças fogem da severa perseguição do inspetor e seu dobermann, Isabelle é levada para dentro das paredes do prédio, percorrendo os sinistros corredores que levam aos relógios e ao quarto do amigo. A menina pergunta como ele consegue viver sozinho e incógnito dentro da estação. Segundo Hugo, enquanto os relógios estiverem funcionando ninguém desconfiará de nada – por isso é tão zeloso em seu trabalho. Foi nessa hora que parei para pensar: quanto tempo, energia e cuidado dispensamos durante a vida para que nossos próprios relógios da estação estejam funcionando...

A parcela mais exposta de nós é justamente os ponteiros que procuramos deixar ao máximo ajustados. Por dentro de nossas paredes podemos estar famintos. Podemos estar solitários. Podemos estar sofrendo muitas dores e angústias. Em nossas entranhas pode existir o órfão que um inspetor persegue implacavelmente para encaminhar à instituição apresentada para nos abrigar (será?). Por isso, damos corda em nossos relógios com tanta aplicação – uma pequena desordem aparente põe em risco nossos segredos. Enquanto o relógio estiver funcionando, ensina Hugo, ninguém desconfiará de nada.

Mas nossa camada aparente também pode sufocar a magia de uma personalidade glamorosa. É o caso de Georges: exilado numa pequena oficina de brinquedos, a vítima predileta dos furtos de Hugo sufoca no tic-tac da monotonia um passado de muita inventividade e brilho. Acredita que será capaz de esconder de todos, principalmente de si mesmo, sua verdadeira história e vocação. Deixa que os rumores de sua morte se espalhem para assumir com a esposa Jeanne (Helen McCrory) uma expatriação voluntária. É um mago desencantado.

Longe de mim afirmar que isso, de sempre expor um comportamento ajustado como um relógio, seja algo errado ou condenável. Contudo, na trama de A Invenção de Hugo Cabret, e desconfio que também na vida, as relações só conseguem se constituir harmoniosas (algo diferente de ordenadas) quando a verdade vem à tona. Novas possibilidades se abrem apenas quando as relações de pertencimento se estabelecem e restabelecem; quando o que estava escondido se torna claro; quando, enfim, as dores são assumidas. No filme, até isso acontecer, Hugo e Georges viveram nas sombras de seus exatos ponteiros, alimentando unicamente a engrenagem das aparências.

Bom, caso você ainda não tenha assistido ao filme, está em cima da hora!

 

 

 


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17.2.12

Vice-versa

Número 460

Rubem Penz

A certeza é um belo e perfumado jardim a ser cultivado com zelo e paciência. Canteiros milimétricos, harmonia de cores, poda, regador. Caminhos marcados por seixos, árvores com copas em guarda-sol, arbustos esculpidos. Formigas andando em fila indiana, abelhas serenas e delicados beija-flores. A certeza, diligente, extrai os inços. O que é muito diferente do mato fechado: habitat da dúvida. Ali, o plano é estar atento, pois a delicadeza, o fascínio, o encanto, pode surgir de onde menos se espera. É no mato que melhor vive a borboleta, cujo voo é a imagem da imprecisão. Na natureza, os escultores são o vento e a água, e o seixo habita o fundo do regato. Na floresta, inço é o homem.

A certeza é religião: templos em que a suspeita evolui para confiança, a confiança se transforma em dogma, o dogma em verdade. Ter certeza é depositar fé, e o paraíso aguarda os homens de boa fé. É crer mesmo contra as evidências, quando não a seu favor. A certeza acalma as feras, orienta ovelhas perdidas, guia por caminhos seguros. Por sua vez, a dúvida é a mola mestra da ciência. Em que outro lugar poderiam conviver diversas hipóteses, seja em conflito ou em harmonia? Em que outro lugar as perguntas são mais importantes do que as respostas – essas crivadas de novas questões? Na ciência, a suspeita evolui para a comprovação, o que dispara novas experiências.

Certeza também é técnica. Preparo, treino, antecipação. Ter para cada necessidade uma resposta pronta, um plano, uma tática. Conhecimento das variáveis e das estratégias. Fundamentos revisados e repetidos até a exaustão. Certeza é militar, uniformizada e com o paiol repleto de argumentos. A dúvida, não. Ela está mais para a guerrilha da intuição, da cisma. Ela nunca sabe, mas procura. E quem procura, acha. Dúvida é sentimento, presságio, pele que se arrepia sem motivo aparente. Ninguém está reparando quando ela chega sem aviso prévio. A dúvida jamais manda telegramas. Ela é o que ainda não está escrito.

A certeza se parece com um concerto: você em uma poltrona confortável e numerada, ingressos adquiridos com prudente antecedência. Os músicos dispostos em ordem, com estilo, seguros. Partituras diante da orquestra e do maestro. Hora para começar, acordes determinados, aplausos ao fim. Tudo o que estava descrito no programa, acontece. Com nuances, é claro. Com ardor, com alma e elevado espírito, com certeza. A dúvida é mais jazzística. Ou, para além do jazz: é jam session. É música fora do plano, músico que ascende da plateia ao palco, surpresa em cada compasso. É frio na barriga no quatro da contagem. É público hipnotizado. É abismo, velocidade, suicídio e ressurreição. Na dúvida, não ultrapasse: ande lado a lado.

Certeza e dúvida, dúvida e certeza, nenhuma é melhor do que a outra. Ou mais necessária, menos desprezível, melhor companheira. Ambas são faces de uma só moeda. Quem carrega certezas no bolso, leva consigo as dúvidas, mesmo quando se nega a olhar. Vice-versa.


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10.2.12

A rotina para além dos trilhos

Número 459

Rubem Penz

Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas, como o mar

Os bondes andam em cima dos trilhos
Vinícius de Moraes

Isso faz alguns anos. Encontrei o irmão mais velho de um bom amigo, daqueles solteirões convictos, e ele olhou incrédulo para a aliança em meu dedo. Ah, isso não me pega! – disse – odeio rotina. Porém, conversa vai, conversa vem, convidou-me para descobrir o que era vida boa de verdade: podia passar de quarta-feira até domingo numa determinada casa noturna que ele estaria lá, com mesmo pessoal e na mesa de sempre. Um grupo seleto e formado, creio, apenas de pessoas que odiavam a rotina.

Outro camarada, dos mais bacanas, disse-me certa vez não entender como eu conseguia permanecer tanto tempo com o mesmo carro (à época, um Uno Mille comprado quase zero e que, assim como eu, varava os anos sem mostrar desgaste algum – fim das comparações, por favor). Abrir a mesma porta, olhar para o mesmo painel e acelerar o mesmo motor era entregar-se à rotina. Ele, religiosamente, trocava de carro a cada novembro, desde que fosse da cor preta ou prata. Um mês antes da data, já estava de olho nas novidades. A única exceção era a de repetir o modelo uma só vez, noutra cor, para o caso de ter gostado muito.

Casa na praia? Isso seria o purgatório para uma amiga. Onde já se viu investir um monte de capital num imóvel? – questionou aflita. Jamais seria daquelas de cumprimentar os vizinhos de quadra (frequentá-los, então, o horror), saber o nome do salva-vidas, ter restaurante predileto, rotinas de caminhada, churrasco no domingo. Ao invés, todo ano fazia igual: escolhia um destino exótico, alugava um quarto de pousada ou apartamento e levava os livros eleitos para serem devorados nas férias.

Ao contrário do que venho dizendo, outro parceiro disse me invejar de montão. Acreditava que o verdadeiro sonho seria ser escritor ou músico, quando não os dois. Sentar ao computador cedo da manhã, dia após dia, e passar horas pensando em novas combinações de palavras. Depois, gastar o dobro deste esforço em releituras, trocando um termo aqui, acrescentando outro acolá, eternamente insatisfeito. Quando não, nos ensaios: repetindo, repetindo, repetindo para, no show, não correr o risco de esquecer o que (e como) tocar em determinado tema. Ele, pobre, cumpria uma jornada rotineira de trabalho.

E assim vamos nós: esgrimindo contra a rotina. Uns buscando outra na mesma mulher, outros a mesma em diversas. Uns reconhecendo as manias de um carro velho, outros eternamente descobrindo as variáveis de um modelo novo. Uns repetindo verões numa casa de litoral, outros alterando a mesma escolha. Uns em repetições de tarefas iguais, outros em tarefas criativas que, igualmente, se repetem.

Ao irmão mais velho do meu amigo, segundo soube, já aconteceu de se casar – virou um tardio papai. Agora sim, um bom trilho para quem odeia a rotina.


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3.2.12

Fábula da Arte, do Sucesso e do Labor

Número 458

Rubem Penz

Era uma vez a velha Arte, o menino Sucesso e o jumento Labor. Eles precisavam ir até o Vilarejo do Bom Destino, em terras altas, para bem vender o Labor. Como a jornada seria longa e exaustiva – o lugar ficava distante uma vida inteira de onde partiriam – muniram-se de muito ânimo e, antes de pegar a estrada, acordaram a melhor forma de fazê-lo: a Arte sobre o Labor, e o Sucesso ao lado, movido por suas próprias forças. Lá se foram em busca do Bom Destino.

No caminho, enquanto passava pelas pessoas, o pequeno cortejo notou que todos cochichavam entre si. Certo dia, já intrigados, os três pararam para perguntar a razão de tanto assunto. É que não entendemos a atitude de vocês, responderam. Por que deixar o rentável Sucesso de lado, quando ele é quem deveria ser movido pelo Labor? A Arte, por ser mais experiente, estaria bem por si. Desejosos do Bom Destino para negociar o Labor, eles resolveram considerar tais opiniões: se tantos falavam, haveria de ser esse o melhor arranjo. E lá se foram.

Porém, a mesma cena se repetiu – eles passando com o Sucesso sobre o Labor, a Arte deixada a pé, e o povo cochichando. Certo dia, já desconfortáveis, os três pararam para perguntar a razão de tanto assunto. É que não entendemos a atitude de vocês, responderam. Como abandonar a frondosa Arte em favor do imaturo Sucesso? Prioridade a um jovem forte, com tanto viço, é muito desrespeito!  Desejosos do Bom Destino ao Labor, eles consideraram nova mudança sem, contudo, voltar à criticada forma original. Agora, Arte, Sucesso e Labor seguiriam caminhando cada um por si. E lá se foram.

Mas a assistência continuava cochichando enquanto nossos protagonistas passavam. Certo dia, já irritados, os três pararam para perguntar a razão de tanto assunto. É que não entendemos a atitude de vocês, responderam. Quem, em sã consciência, pode frear o promissor andamento do Sucesso, ou impor à Arte tamanho sacrifício, desperdiçando a força do Labor? Confusos, ainda que desejosos do Bom Destino, eles recompuseram o grupo: Arte e Sucesso apertados por sobre o lombo do único Labor. E lá se foram.

Todavia, na primeira encruzilhada, a Arte e o Sucesso começaram a divergir: quem dos dois guiaria as rédeas do Labor pelo melhor caminho? A Arte se amparava na tradição, tentando impor uma rota ao mesmo tempo inovadora e segura. O afoito Sucesso só desejava bons atalhos. Nessas, o pobre Labor parecia andar em círculos, e muito pesavam suas pernas.

O pessoal? Continuava assuntando ao pé do ouvido, é claro. E rindo! Bem feito, diziam. Onde já se viu querer conciliar num só passo a Arte e o Sucesso para chegar ao cume, onde estará o Bom Destino para negociar o Labor? Isso é tarefa para quem nasce com personalidade, e não parece ser o caso desse trio aí, que nunca para de dar ouvidos aos outros.


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