29.6.12

Cardápio

Número 479
Rubem Penz
Caso tenha feito reserva, seja bem-vinda. Desde já alertamos que a casa trabalha exclusivamente com menu confiança, franqueando ao chef as escolhas conforme os melhores ingredientes do momento. Esperamos dar-lhe motivos para voltar com frequência. Bom apetite!
Aperitivos
Sorrisos – brinde da casa. Temos desde os mais discretos até os escancarados. Sorrisos de soslaio, francos, amarelos, cúmplices, nervosos, indisfarçáveis. As porções são generosas e retornam tantas vezes quanto forem necessárias.
Cumprimentos – nem precisa pedir, acompanham os sorrisos. Beijos para clientes tradicionais da casa. Abraços para o público em geral, desde que haja alguma intimidade. Franquia de apertos de mão.
Conversa despretensiosa – ofertamos desde a mais light (condições climáticas), passando pelas apimentadas (recheio de segundas intenções), substanciosas (cultura, lazer, filosofia de botequim) e, também, pesadas (política).
Entrada
Conversa pretensiosa – tempero leve. Verdes para colher maduro. Informações úteis, inúteis ou fúteis regadas de malemolência. Porção ligeira, mas para ser degustada sem pressa. Também conhecida por preliminares.
Primeiro prato
Elogios ao molho de sedução – iscas. Especialidade da casa. Porção envolvente com intenções generosas colhidas do fundo do coração. A casa não trabalha com intenções artificiais, transgênicas ou cultivadas por interesses secundários. Falsas, então, nem pensar – até nos ofende!
Prato principal – para ser servido fumegante: corpo e alma ao molho franco. Recomendado apenas para paladares finos e comensais de alto nível. Slow food na fiel acepção do termo. Aos olhos mais apressados, o prato dá ares de alta gastronomia, porém, seu maior segredo está na simplicidade. Ou seria o contrário? Não tem preço.
Sobremesa
Bufê – jamais faltará doçura. Temos papo de anjo, bem casados e Romeu & Julieta. Nenhuma porção é adoçada artificialmente.
Bebidas não alcoólicas
Tipos e marcas variadas – tanta conversa costuma deixar a boca seca.
Bebidas alcoólicas
Beijos destilados, do outro lado, por todos os lados! Inclusive (aliás, principalmente) licorosos.
Café e chá
Sempre, mas sem colher – ninguém mais costuma dar.
Condições de pagamento
Fazemos questão de parcelar a perder de vista. Aceitamos todos os cartões.

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22.6.12

Horroróscopo - previsões de mau tempo

Número 478
Rubem Penz
Sob o céu sempre nebuloso dos mal humorados, nem os astros ajudam:
Ariano, você usa sua natural energia para se estressar com todos. Por ser criativo, não tem paciência com a rotina. Seu humor inteligente e ácido angaria algumas antipatias. Autossuficiente, acaba fazendo tudo sozinho e, claro, reclama disso.
Taurino, você é, sim, um trabalhador incansável, atento à segurança e passa muita confiabilidade aos demais. Mas, como todo cabeça dura, não suporta que algo fuja aos padrões. Logo, fica aí, reclamando baixinho que os outros não fazem nada direito. Um chato, você, não?
Geminiano, sua inventividade e versatilidade, tão propagadas, causam uma inveja e tanto. Então, quando você despeja uma torrente de soluções inovadoras e só recebe críticas de volta, diz que tolhem seu talento, o que causa terríveis oscilações de humor.
Canceriano, não se encuque muito com o que vai ler agora, nem fique ofendido ou preocupado demais, tá? Mas a verdade é que você é um encucado de nascença, se ofende por nada e está sempre preocupado com isso. Depois, não entende a razão de ser tão desconfiado com a humanidade.
Leonino, por favor, dá um tempo! Vê se cresce.
Virginiano, o negócio é o seguinte: sabe aquele plano sequenciado de ações complementares e sinérgicas capaz de dar conta das mais diversas variáveis com uma margem de erro insignificante? Ninguém está interessado. Conviva com isso e desfaça a carranca.
Libriano, senhor de si, equilibrado, imparcial, diplomático. Pois é... Não fica muito bem o senhor posar de dono da verdade, apontando o dedo para as distorções do mundo. Desencana!
Escorpiano, calma: conte até dez. Como assim, para quê? Só um pouco, já explico... Não, não... Volta aqui, volta. Hei... Volta, vai!
Sagitariano, você que paira dois metros acima do chão com essa cara de quem chegou de outra dimensão com todas as respostas: custa aterrissar e ouvir o que os outros têm a dizer? Fica aí, de mal, "zen" paciência. Que viagem.
Você, de Capricórnio, é o stress em forma de gente. Rígido, focado, persistente, metódico e... metido a besta. Não relaxa nem deixa ninguém em paz ao seu lado. Experimente um suco de maracujá, por favor.
Aquariano, pare de dizer que ninguém o acompanha; que ninguém está em seu nível; que ninguém vê o que você está cansado de enxergar. Use sua lógica para descobrir a razão dessa úlcera que lhe azeda as relações.
Pisciano, se todos fossem no mundo, iguais a você, que maravilha viver. Teríamos paz, harmonia, espiritualidade, compaixão... Não chore. Assim você termina com o ânimo do pessoal. Quer saber, tanta bondade me deprime. Parei de escrever. Pronto, foi o que você conseguiu. Satisfeito?
PS: tente descobrir qual é meu signo e mande para mim seu palpite! 

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14.6.12

Depois do Vendaval

Número 477
Rubem Penz
Antes, havia um teto para nos abrigar da chuva, do sol, da solidão. Segurança tamanha que parecia fadada à perenidade. Brecha de espaço e tempo. Um acolhimento agridoce mesclava momentos de completo pertencimento com instantes da mais pura impertinência. A nós, de meninos até jovens, cabia intuir a hora de permanecer ou sair, antes da inevitável xingaria. Antes, havia o teto do penhor e da memória.
Depois do Vendaval, o que virá?
Antes, havia constante paradoxo de paredes: dividiam ambientes e uniam pessoas. Superfícies que apoiaram nossas cabeças quando estávamos sentados nos bancos do alpendre; apoiaram nossos corpos em amassos carnavalescos; ampararam nossa inconsciência alcoolizada. Paredes que se abriam em janelões envidraçados para a entrada e a fuga de toda a luz, também em portões do paraíso. Antes, havia paredes brancas como a paz.
Depois do Vendaval, o que virá?
Antes, havia um piso polido por pés carregados de areia. Lá, deixamos nosso DNA em muitas escalavradas de joelhos, deixamos pegadas num trilhar cotidiano e incansável, derramamos lágrimas e cerveja, reverberamos as mais estridentes gargalhadas. Dos chinelos de dedos aos sapatos de salto alto, sempre estivemos como que descalços, tamanha intimidade com aquele chão. Chão que viu tombos e decolagens.
Depois do Vendaval, o que virá?
Antes, não havia dia nem hora. A manhã abria seus olhos ao aroma do café para ver o bom dia dos passantes ao mar e para a leitura preguiçosa das notícias nos jornais: reportes do mundo exterior (a Praia do Barco sempre fora um lugar à parte). Meio-dia de almoço caseiro para hóspedes e hordas de peregrinos com suas viandas em busca da boa boia. Tarde de preguiça e horas infinitas. Noite de carteado, samba, beijos e conversa fora, até pouco antes do novo amanhecer.
Depois do Vendaval, o que virá?
Antes, havia muitos pontos: ponto de encontro, de partida, de chegada, de referência... Todos, batíamos o ponto no Vendaval. Marcávamos nossos pontos nas incontáveis gincanas, costurávamos melodias e fantasias ponto por ponto para o carnaval. Apontávamos o dedo acusador da fofoca e éramos apontados com igual malícia pelos demais. A vida circulava na ponta da língua, sempre afiada. Só era proibido entregar os pontos: vencer a madrugada era uma questão de honra.
Depois do Vendaval, o que virá?
Hoje, não há mais teto, foram-se as paredes, sumiu nosso chão. O Hotel Vendaval perdeu-se nas horas consumido pelo ponto final. Agora, o que virá? Saudade e a certeza de que tudo valeu em cada preguiçoso segundo.
Depois do Vendaval, a bonança.


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9.6.12

Ah, pois é...

Quem nasceu para arbusto

jamais será árvore.

Também por isso, dificilmente vira lenha...

8.6.12

Fertilidade

Número 476

Rubem Penz

O amor não é alimento, mas nenhuma refeição jamais nutriu e fez tanto bem quanto aquela preparada com carinho verdadeiro. O amor não ergue paredes, mesmo que inexista ambiente mais acolhedor do que qualquer um onde nos espera o abraço de afeto. O amor nada ensina, treina, instrui ou capacita ao mesmo tempo em que é ele a única lição que jamais deveríamos deixar de aprender e ensinar.

O amor não esquenta – sim, roupas e cobertores ainda serão imprescindíveis durante o inverno. Agora, não haverá pés aquecidos sem antes acalentar a alma. O amor não nos leva daqui para lá, ou de lá para cá: ele nos eleva. O amor nunca foi o responsável pelas cifras na conta bancária (boas ou más). Ao contrário, por ele, ou em sua promessa (concreta ou vã), há quem demandaria fortunas, contrairia dívidas ou aplicaria calotes.

Ninguém aprende andar por amor: quem manda em nossos instintos é a necessidade. Porém, nenhuma caminhada será extenuante ou impossível quando motivada pela paixão. O amor não tem a faculdade de transformar sonhos em realidade – com ele, a realidade é que ganhará ares de sonho. O amor jamais será fonte de status ou projeção social: seu alvo é a dignidade, a virtude, a transcendência.

O amor jamais será causa de sofrimento, sacrifício ou dor. Com ele, toda contrariedade será superada mais suavemente. Dói, sim, o desamor. Um é lupa para a tolerância, o outro faz crescer as diferenças a ponto de deixá-las incontornáveis. Eis um dos maiores perigos do amor: seu poder anestésico pode até causar a morte heroica e solidária. Eis um dos maiores perigos do desamor: sua intolerância ao sofrimento pode até causar a longevidade covarde e egoísta.

Por tudo isso, e pelo que mais e melhor nos disseram os poetas, viver sem amor é passar batido pela vida. Mas só há um amor que podemos cultivar e fazer crescer: o nosso. Primeiro, para consumo interno – amor próprio. Depois, como dizem os profetas, para distribuir a quem esteja ao nosso redor. Os demais amores, no máximo, poderemos ter na base das trocas. E, nessas trocas, o que damos e recebemos? Apenas sementes de amor – promessas que também dependerão de interno cultivar.

A todos, e a mim também, desejo uma alma fértil e um amor vicejante.


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1.6.12

Era outra vez

Número 475

Rubem Penz

Hoje cedo Cinderela não encontrou o príncipe encantado no ônibus.  Na verdade, ficou absorta na janela, contando quantas mulheres estavam de saias e quantas de calças nos carros que passavam pelo coletivo. Descobriu – quem diria? – que há muito mais mulheres que vestem calças.

Também não encontrou o príncipe encantado ao atravessar a avenida movimentada. Chegou à esquina quando o sinal verde já estava piscando, e encontrar alguém assim tão especial é complicado quando se está correndo de salto alto. O máximo de sorte seria ele a encontrar, desde que não estivesse em um carro – ninguém merece ser levada ao pronto-socorro municipal quando o destino desejado é um nobre altar...

Inscrições abertas para a oficina de crônicas Aperitivo Santa Sede (12 terças-feiras, 19h30, a partir de 12/06 no bar Apolinário). Informações e inscrições em rubempenz@gmail.com . Escreva!

No almoço, Cinderela perdeu outra chance de encontrar seu príncipe encantado: junto com Cyntia e Jô, divertiu-se com zarabatanas de caneta Bic e pedacinhos mascados de guardanapo de papel. Os alvos principais foram os carecas. Dois deles ficaram meio indignados e chegaram a ir até elas na mesa para tomar satisfação. Um terceiro reclamou bastante, mas aí com certa razão: o papelzinho rebateu no nariz dele e caiu para dentro da canja de galinha. Aí você pergunta: por que não ficaram olhando para os homens bonitos em busca do príncipe encantado? Simplesmente porque queimariam o filme com eles levando tiros de zarabatana!

Antes de voltar do almoço, foi-se, por detalhe, outra oportunidade de encontrar o príncipe encantado. O lugar era até propício: passaram pela praça na direção dos camelôs da calçada oposta. É o mesmo trajeto de nove entre dez funcionários de banco, muitos deles reluzentes estudantes de Administração, Economia ou Marketing. O problema é tirar os olhos do chão quando se está apostando quem pisa apenas nas pedras escuras. Pouca gente faz ideia de quanta concentração é necessária. A Cyntia ganhou. Outra vez!

Em seu trabalho, a chance de encontrar o príncipe encantado era zero: Seu Antenor (velho), Jorginho (e suas espinhas na testa), Anderson (casado) e Kleberson, esse mais pelado do que ela. Pior que vive dando em cima – a chama de princesa. Outro dia apareceu com uma história de passearem no barco que recém inaugurou. Bom programa para encontrar um príncipe. Mas, com o Kleberson ao lado e babando de amores, babaus encantamento.

Ao final da tarde, Cinderela pegou no sono dentro do ônibus e sonhou com o belo e amoroso príncipe. Acordou dois pontos adiante e retornou a pé, morrendo de medo de encontrar outra coisa pelo caminho, nada parecido com nobres mancebos. Depois do jantar, tomou um banho e foi reencontrar seus sonhos na TV. Antes de adormecer, combinou via SMS de irem, ela e suas amigas, para a praia no final de semana.

Felizes para sempre.


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