14.6.12

Depois do Vendaval

Número 477
Rubem Penz
Antes, havia um teto para nos abrigar da chuva, do sol, da solidão. Segurança tamanha que parecia fadada à perenidade. Brecha de espaço e tempo. Um acolhimento agridoce mesclava momentos de completo pertencimento com instantes da mais pura impertinência. A nós, de meninos até jovens, cabia intuir a hora de permanecer ou sair, antes da inevitável xingaria. Antes, havia o teto do penhor e da memória.
Depois do Vendaval, o que virá?
Antes, havia constante paradoxo de paredes: dividiam ambientes e uniam pessoas. Superfícies que apoiaram nossas cabeças quando estávamos sentados nos bancos do alpendre; apoiaram nossos corpos em amassos carnavalescos; ampararam nossa inconsciência alcoolizada. Paredes que se abriam em janelões envidraçados para a entrada e a fuga de toda a luz, também em portões do paraíso. Antes, havia paredes brancas como a paz.
Depois do Vendaval, o que virá?
Antes, havia um piso polido por pés carregados de areia. Lá, deixamos nosso DNA em muitas escalavradas de joelhos, deixamos pegadas num trilhar cotidiano e incansável, derramamos lágrimas e cerveja, reverberamos as mais estridentes gargalhadas. Dos chinelos de dedos aos sapatos de salto alto, sempre estivemos como que descalços, tamanha intimidade com aquele chão. Chão que viu tombos e decolagens.
Depois do Vendaval, o que virá?
Antes, não havia dia nem hora. A manhã abria seus olhos ao aroma do café para ver o bom dia dos passantes ao mar e para a leitura preguiçosa das notícias nos jornais: reportes do mundo exterior (a Praia do Barco sempre fora um lugar à parte). Meio-dia de almoço caseiro para hóspedes e hordas de peregrinos com suas viandas em busca da boa boia. Tarde de preguiça e horas infinitas. Noite de carteado, samba, beijos e conversa fora, até pouco antes do novo amanhecer.
Depois do Vendaval, o que virá?
Antes, havia muitos pontos: ponto de encontro, de partida, de chegada, de referência... Todos, batíamos o ponto no Vendaval. Marcávamos nossos pontos nas incontáveis gincanas, costurávamos melodias e fantasias ponto por ponto para o carnaval. Apontávamos o dedo acusador da fofoca e éramos apontados com igual malícia pelos demais. A vida circulava na ponta da língua, sempre afiada. Só era proibido entregar os pontos: vencer a madrugada era uma questão de honra.
Depois do Vendaval, o que virá?
Hoje, não há mais teto, foram-se as paredes, sumiu nosso chão. O Hotel Vendaval perdeu-se nas horas consumido pelo ponto final. Agora, o que virá? Saudade e a certeza de que tudo valeu em cada preguiçoso segundo.
Depois do Vendaval, a bonança.


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4 comentários:

Alexandre LTJ disse...

Realmente bom demais e emocionante, parabens, Maninho!!!!

Rubem Penz disse...

Obrigado, Alexandre!

jaqueline disse...

Simplesmente maravilhoso. Só quem viveu diria tudo isso com tanta alma. Parabéns. Meu coração me levou até lá agora.

Anônimo disse...

Lindas - as vezes doloridas - recordações da infância que, ainda que deixada para trás, permanece em nós.
Que venha a bonança!
Um abração,
Jussara Lucena

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