31.8.12

O causo da mangueira assombrada

Número 488

Rubem Penz

O folclore brasileiro é riquíssimo em histórias. Muitas delas nascem mais perto da gente do que se supõe. Por exemplo, no caso (ou melhor, no causo) de existir uma mangueira assombrada lá para os lados de Santana do Livramento, fronteira do Brasil com o Uruguai. Quem conta essa passagem é o tio Darci, que não é meu parente, e sim do grande amigo João (outro João, não aquele do Lupicínio Rodrigues em Cevando o amargo).

Pois tudo aconteceu com o próprio tio Darci, que jura ser verdade. Exausto em uma tropeada longa, calhou de, numa tarde nublada, anoitecer mais cedo justamente próximo de uma mal afamada mangueira. Nenhum tropeiro pousava lá bem por isso: juravam ser assombrada. Pior, a aparição era de uma alma penada mulher, desejosa dos homens que paravam por aquelas bandas. Uma versão gaudéria do canto da sereia.

Metade pelo cansaço, metade por não acreditar em coisas do outro mundo, tio Darci acomodou a boiada, apeou do cavalo, acendeu o fogo e cevou o mate, desafiando a lenda. Chover, não chovia – ficava só na promessa. Promessa em forma de vento inconstante. No abandono do Pampa ali estavam, solitos, ele e os animais. Quem sabe na tutela do Nosso Senhor.

Quando escureceu de vez e o silêncio ficou interrompido só pelos soluços dos gravetos queimando, uma voz fugidia se fez notar, carregada por uma lufada do vento alquebrado: "Vem meu amor...". Era baixinho, ainda que suficiente para intrigar o gaúcho. Tio Darci seguiu cuidando a panela que cozia o arroz de carreteiro. Outro ventar e novo convite: "Vem meu amor...".  Caso sério. Sem dúvida, voz de mulher. Mulher bonita. E, por mais que o homem negasse a possibilidade, aquele melodioso convite prosseguia insistente: "Vem meu amor...".

Chegara a hora de dividir o povo entre os que honravam suas bombachas e os covardes. E ele não estava disposto a cerrar fileiras com os que dali corriam como piás. Pegou o facão na mão direita, um lampião na esquerda e saiu atrás da voz. Primeiro, na direção da qual vinha o vento, para ver se este era o culpado. Que nada: dali, só o silêncio. Seguiu volteando feito ronda de milico até chegar num capão de árvores baixas. Era o lugar sombrio de onde vinha o convite: "Vem meu amor...".

Pois bem certinho, sob um espinilho de copa baixa, não é que tinha um disco velho partido na metade, ainda daqueles de 78 rpm? Era bater o vento, sacudindo os galhos da árvore, e um dos espinhos corria num pedacinho do disco: "Vem meu amor...". Cabe dizer que, mesmo em mau estado, deu pra ler o nome do fantasma: uma tal de Carmen Miranda.


--
Visite-me em:
www.rubempenz.com.br
www.rufardostambores.blogspot.com



29.8.12

Coluna do Jornal Metro 29.08.2012


GREVE DE SEXO E OUTRAS SEM-VERGONHICES
Está no noticiário: hoje, faz 24 horas que as togolesas entraram em greve de sexo. A ideia é abster-se de abastecer maridos para convencê-los a derrubarem o regime opressor. A inspiração vem das liberianas, e do fato de o Presidente gostar muito dos esportes de alcova. Assim, elas não amolecerão durante uma semana, na esperança de que os homens endureçam.
Que usem o ímpeto para a derrubada do governo – argumentam as ativistas, joelhos fechados em piquete. Em riste, apenas os punhos – ecoam as palavras de ordem. Armados, só se for para a luta – ordenam sem dó nem piedade. Se desejarem muito meter algo, que metam logo o pé na porta do Palácio – bradam as mais dispostas a levar essa história de trocadilhos além da fronteira do bom gosto.
Fiz uma rápida enquete com os amigos de bar sobre essa manchete. Um deles comentou que, na casa dele, uma semana sem sexo não seria greve, e sim uma bênção, pois está exaurido de tanto fazer. Por algum estranho motivo, ninguém acreditou. Quando ameaçamos ligar para a patroa e conferir a história, o desmentido veio rápido.
Outro, cabisbaixo, confidenciou para o grupo em voz miúda: no meu caso, sexo de sete em sete dias não é greve, está mais para operação padrão... Parece que ele não ergue a bandeira com tal frequência desde o tempo dos Caras Pintadas. Para motivá-lo à insurgência civil, bastaria a promessa de retorno à normalidade constitucional, mesmo que, em alguma medida, provisória.
Um terceiro invejou a situação africana. Para ele, deixar de fazer sexo em causa tão nobre é algo magnífico. Por aqui, qualquer motivo tolo já suscita paralisações. Foi tomar um chope com os parceiros na sexta-feira? Greve. Coincidiu ter futebol na TV quarta e quinta? Greve. Deu carona à nova colega de repartição porque chovia muito, ficando preso num engarrafamento e perdeu a hora? Greve. Assim é difícil negociar!
Chamado a tomar posição nesse enrosco, procurei ser conciliador. Sem ter o que tirar nem por quanto ao mérito da iniciativa togolesa, a solução poderia estar nas mãos dos homens. Ora, que prometessem, por um lado, uma passeata aqui, outra acolá. Em troca, exigissem uns 30% de disposição – apenas para serviços essenciais. Afinal, o importante é cair o governo, não a moral da tropa.
Enquanto isso, no Brasil, a sem-vergonhice pública não faz greve nem tira férias. E nós, passivos.

24.8.12

Reparando

Número 487

Rubem Penz

Reparar é um dos sinônimos de olhar. Carrega consigo, porém, outro ponto de vista: é um olhar crítico. Reparando, estamos de alguma forma colocando um juízo de valor, comparando com determinado padrão estabelecido, analisando. Enfim, mais atentos do que supõe o olhar descompromissado.

Há alguns vícios de profissão que fazem com que pessoas reparem nos corpos dos outros. Ao professor de Educação Física jamais escapa uma escoliose, por exemplo. Dentista nenhum é imune à análise de nosso sorriso, mesmo no encontro informal. Policiais de folga no serviço antecipam-se apenas com base em atitudes suspeitas.

E, como a compulsão sexual move a vida do planeta, mulheres costumam reparar nos homens que passam. Eles, ainda mais, nas mulheres que desfilam.

Era o que sempre acontecia com o Joel. Porém, enquanto ele reparava na gata flanando pelas calçadas, sua mulher reparava nele reparando. Quando se viu flagrado, olhou para a esposa com aquela cara de – quê foi? Quê foi digo eu – respondeu ela furiosa, desejando saber se ele perdera alguma coisa naquele jovem traseiro. Mas o homem não se deu por vencido:

– Ah, querida, vai dizer que você não viu?

– Vi o quê, Joel?

– A moça! Será que ela não percebe que o jeans de cós tão baixo desfavorece suas pernas curtas?

Jogada de mestre! Joel descobriu um alvará para olhares furtivos: comentar algo sobre a roupa. Porém, seus conhecimentos mal passavam do cós – precisava pesquisar mais. Trocou a assinatura da revista de esporte por uma de moda, acompanhou tendências na TV, descobriu um novo mundo.

– Olhando o quê, Joel?

– O decote desfavorece os ombros dela... Aquela camisa solta disfarça o culote da outra... O corte de cabelo destoa com o formato do rosto da do meio... A mais jovem deveria aprender a caminhar de saltos...

Quando tudo parecia perfeito em sua estratégia, surgiu um terrível efeito colateral. Hoje, Joel não mais consegue mirar as mulheres apenas com olhos de gula. Por mais que deseje, não se concentra em peitos e bundas como outrora. Quando vê, já está reparando na roupa...


--
Visite-me em:
www.rubempenz.com.br
www.rufardostambores.blogspot.com



21.8.12

Oficinas: inscrições abertas, vagas limitadas


Rubem Penz abre inscrições para duas oficinas de crônicas

O publicitário, músico e escritor Rubem Penz oferece a partir de setembro duas oportunidades para quem deseja conhecer e praticar o mais ágil gênero literário: a crônica. Em suas oficinas, depois de breve estudo conceitual, os participantes partem para a produção que explora a grande variedade de estilos presente na obra dos grandes expoentes nacionais. Mais: servem de vitrine para quem deseja se candidatar para a oficina Santa Sede, crônicas de botequim em 2013, cuja produção lança uma antologia por ano.

Aperitivo Santa Sede – no Dado Garden Grill. Encontros quinzenais em setembro, outubro e novembro, sempre nas segundas-feiras, 20h – 22h. Ideal para quem nunca participou de oficinas literárias e deseja investigar seu talento. Também para quem usa a palavra escrita em sua profissão e visa qualidade de estilo. 9 vagas

Crônicas no Templo – promoção do Templo do Oriente. Encontros semanais em setembro, outubro e novembro, sempre nas terças-feiras, 20h30 – 22h15. Concebida para acomodar tanto os novatos em literatura quanto os autores que já participaram de oficinas de outros gêneros (contos, poesia, infanto-juvenil). 6 vagas

Rubem é cronista do jornal Metro Porto Alegre (entre outros veículos) e do Blog Rufar dos Tambores  www.rufardostambores.blogspot.com. Ministra oficinas desde 2008, com destaque para a Santa Sede, crônicas de botequim – cuja safra atual lançará a terceira antologia da série em novembro.

Serviço:

O quê:             Oficina Aperitivo Santa Sede
Quando:         Quinzenal, a partir de 17 de setembro, segundas-feiras, 20h
Onde:                         Dado Garden Grill, Shopping Praia de Belas, Porto Alegre
Valor:              Três parcelas de R$100,00
Informações
e inscrições:   rubempenz@gmail.com ou (51) 9123.5540

O quê:             Oficina Crônicas no Templo
Quando:         Semanal, a partir de 11 de setembro, terças-feiras, 20h30
Onde:             Templo do Oriente Kebaberia, Rua Cel. Bordini, 92, Porto Alegre
Valor:              Três parcelas de R$150,00
Informações
(51) 3325.6138




17.8.12

Corte e costura


Número 486
Rubem Penz
Está magoada, ofendida, quase em depressão. Dez anos, diz a si mesma. Dez anos! Uma história. Muitas histórias. O começo e seus projetos – sonho de uma longa vida em comum. Entrara de cabeça. Aos poucos, porém, as águas do casamento ficaram revoltas, turvas, e o mergulho deixou de ser assim tão seguro. Busca na solidão do apartamento uma boia, um tempo para retomar o fôlego. Uma direção para onde nadar.
Tesoura nas mãos – terapia – corta minuciosamente aquelas fotos em que aparecem os dois, separando cada parte do casal em montinhos distantes. Natal, Ano Novo, aniversários. Sorrisos fedem a escárnio, abraços parecem estupros, beijos salivavam fel. É preciso segurar a tesoura para evitar a castração. Deseja o poder dos vodus. Quer odiar menos, mas amara demais.
Acomoda-o, caco por caco, num envelope pardo, tamanho A4. Não é novo, está amassado em uma das pontas e começando a puir na dobra. Serve para seus propósitos. Ele não merece mais. Endereça o destino e não informa remetente: é óbvio. Até ele saberá. Na agência de correios mais próxima, carta comum, por favor – não há o que valha registrar.
Dá voltas pelo bairro. Deseja perder-se. Vai ao shopping, entra no cinema, visita a irmã. Quando volta, à noite, encontra o tapete aspirado, as toalhas trocadas, a cama feita e nenhum sinal de si – sumiram suas metades. Na certa a faxineira considerou lixo aquela papelada partida. Passada a ira momentânea, pensa: melhor. Que apenas ele fique com os destroços da relação. Que faça sozinho o rescaldo. Que sofra.
Na madrugada, sonha com suas perdidas fotos e acorda com taquicardia. Confundem-se ficção e realidade – agora escuta o barulhento caminhão do lixo passando ali defronte, fim de qualquer esperança de resgate. Saíra perdendo já nas primeiras horas da separação: ele com paisagens parciais, ela sem nada. Ele, bem ou mal, inteiro. Ela no lixão da cidade. Ele, destinatário nominado. Ela, remetente desconhecido.
A semana custa a passar. Desconfia que será desse jeito para sempre. Demora-se na cama. Tem saudade, teme o futuro. Terminar talvez tivesse sido precipitado demais. Mas, e o orgulho? A faxineira lhe traz um envelope. Branco. Impecável. Quem touxe? Seu marido, ué, que veio aqui quarta-feira passada, também, buscar umas coisas. Abre com pressa. Dentro, apenas um rolo de fita Durex pela metade.

10.8.12

Dois corações


Número 485
Rubem Penz
Assisto o desempenho dos atletas brasileiros nos Jogos Olímpicos com dois corações, e acho que não sou o único. Um torce para eles de modo fervoroso, apaixonado, intenso. O outro, seca. Mas seca muito: deseja que não ganhem nem bronze. De preferência, que façam fiascos.
(Londres 2012 atende ao coração quente e também ao frio)
Não adianta: quando nossas cores entram nas quadras, nas pistas, piscinas, tatames ou campos, sou tomado pelo sentimento patriótico. Meu passado acadêmico traz a compreensão de quanto é custoso e raro ser um atleta de altíssimo nível – nível olímpico. Isso é um plano de vida e implica enormes sacrifícios pessoais em busca da glória improvável. Afinal, no ápice só tem lugar para um, ou uma, e a peneira é milimétrica. Há muita emoção ao ver a bandeira no alto, o hino ecoando e um brasileiro (irmão de solo) comovido.
Porém, o mesmo patriotismo, quando combinado com o senso crítico, imediatamente aciona o desejo de que nossos resultados não mascarem o quadro triste do esporte nacional. Vivemos em um país continental e miscigenado, dois dos mais fortes ingredientes para o sucesso nas diversas modalidades olímpicas. Não nos falta material humano (aliás, abunda) nem clima dócil. Logo, deixamos de ser uma potência esportiva por outros fatores, todos ligados à esfera política. Nossos feitos, pífios, são consequências do descaso na educação (principalmente) e na saúde, preceitos constitucionais do poder público.
Maior raiva surge com o oportunismo dos governantes tão logo aparecem novos heróis. Pousam para fotos, discursam, sorriem e faturam benefícios pessoais ou partidários. Pior: enaltecem no guerreiro ou guerreira o fato de superarem as dificuldades cuja responsabilidade recai sobre seus ombros, sem confessar ou expiar-se. Esquecem que a glória olímpica é apenas a cereja do bolo cuja massa, recheio e cobertura se faz com milhares de jovens saudáveis, com boa formação moral, distantes do crime e da droga. O desporto salva e dignifica vidas desde a base até a elite.
Quero um dia unificar meus corações. Quero chorar abraçado na bandeira verde e amarela. Quero, acima de tudo, abandonar o destaque em outros rankings vergonhosos, tais como o da desigualdade social, das agruras na saúde pública e dos fiascos na educação. Chega de ver meu país no pódio da corrupção, da violência e da malandragem. É: quero só torcer, sem secar. Parece querer demais?

3.8.12

Inimigo íntimo


Número 484
Rubem Penz
Existem pessoas que cultivam com enorme apreço seus desafetos, nutrem com zelo as picuinhas, sorvem com prazer a menor chance de implicar com o outro. Tire a dúvida: coloque-o num balneário deserto um final de semana inteiro. Céu azul, temperatura agradável, água fresca, ninguém por perto. Paz? Que nada, inferno! Felicidade é alguém oferecendo um bom motivo para a discórdia – o que ocorre com frequência quando o tema é futebol.
Soube que isso sempre acontecia entre dois vizinhos de apartamento, seu Antônio Maria e Juarez. Torcedores de clubes rivais, nenhum perdia a oportunidade de festejar em alto brado suas glórias, ou de tripudiar sobre o insucesso alheio. Bastava um dos times fazer ou levar um gol para o vizinho beneficiado subir o volume do rádio, colocar a cabeça para fora da janela e gritar com endereço certo: Toma boneca, essa é pra aprender! Lá e cá, sempre a mesma irritante frase: Toma boneca, essa é pra aprender!
Houve uma quarta-feira de campeonato regional em que eles se encontraram no elevador. Juarez tinha um pacote de latinhas de cerveja nas mãos – providência a ser gelada para a noite de clássico. Provocaram-se discretamente, cada qual mais confiante do que o outro, ambos com medo da possível flauta. Temor procedente, pois o jogo foi muito parelho e se manteve em zero a zero até os 42 do segundo tempo. Num lance de bola parada, o time do seu Antônio Maria selou o placar. Juarez estranhou o silêncio.
O velho morava só, e Juarez disse para a esposa que havia algo errado acontecendo. Ligou para a portaria perguntando se o vizinho havia saído de casa. Não. Correu até a porta ao lado e chamou com insistência. Nada. Sem pestanejar, pediu ajuda e forçaram a fechadura. Ele estava desmaiado no banheiro. Correram para o pronto-socorro. Graças a Deus não passara de um susto, mas ficou hospitalizado para investigar as causas da perda dos sentidos.
A verdade é que Juarez prestava muita atenção ao vizinho, mesmo que isso só fosse perceptível em dias de futebol. O que fez, certamente foi determinante na recuperação de seu Antônio Maria. Este que, aliás, soube do resultado do jogo apenas na quinta-feira à tarde. Ainda baixado para exames, ao receber a visita do rival, fez questão de chamá-lo para um abraço. Era comovente vê-lo tão agradecido. Então, ao ouvido, balbuciou: Tomou ontem, né boneca?